domingo, 6 de novembro de 2022

A diferenciada enfermeira Myra North

Uma tira dominical datada de 27 de novembro de 1938.

A partir do título, um leitor poderia esperar que Myra North, Enfermeira Especial iria se tratar de uma novela em quadrinhos e não teria nada de ação intensa. Mas note a última palavra do título: qualquer um que esperasse que a tira tratasse de uma vida simples e pacata de uma enfermeira não faz ideia do quão especial Myra North foi. As pessoas que ela encontrava no seu dia a dia incluíam doutores, pacientes e hipocondríacos — mas a lista também incluía espiões, lunáticos e mestres do crime.
As aventuras de Myra nos jornais diários norte-americanos começaram numa segunda, dia 10 de fevereiro de 1936. O artista era Charles Coll, que trabalhou como cartunista mas não era conhecido por nenhuma tira até aquele momento. O escritor era Ray Thompson, que já tinha escrito algumas tiras de Somebody’s Stenog [Estenógrafo de Alguém] para A.E. Howard, e criaria também as propagandas em quadrinhos para o chiclete Dubble Bubble [na época, um dos grandes chicles que rivalizou com o Bazooka Joe]. Tudo foi distribuído pela Newspaper Enterprise Association, o sindicato de tiras como Alley Oop [Brucutu], Out Our Way [Saiam do Nosso Caminho] e outras.

A tira dominical de 9 de fevereiro de 1941.

Myra às vezes passava pelas emoções de uma vida razoavelmente normal, realizando atividades que enfermeiras realizam e se encontrando com seu namorado, Jack Lane. Mas ela era continuamente interrompida por pacientes assassinos, colegas realizando experimentos ilícitos e outras coisas do tipo. Ela também foi atrás dos problemas certa vez, viajando pelo mundo em busca de conquistadores e outros super vilões.
De começo, a tira pareceu ser muito bem recebida pelos leitores. Ela ganhou uma versão dominical a partir de 6 de dezembro do mesmo ano de lançamento e também um Big Little Book em 1938. Mas, mesmo tendo esse modesto sucesso, sua vida foi curta.
A tira diária de Myra terminou em 25 de março de 1939 enquanto que a dominical foi até 31 de agosto de 1941. Thompson e Coll trabalharam nela do começo ao fim.

Texto-base por Donald D. Markstein.
Tradução e adaptação por Lucas Cristovam.

02 de novembro de 2022,
Parnamirim, Rio Grande do Norte, Brasil.

domingo, 1 de maio de 2022

Sobre o "Lanterna Verde" de Grant Morrison e Liam Sharp

As oito edições que compõem a primeira temporada
de
Lanterna Verde, lançadas pela Panini Comics
entre 2019 e 2020.

Lanterna Verde está sendo minha primeira experiência Morrisoniana e... eu realmente não sei como explicar o que tô sentindo sobre tudo que tô lendo. Acho que vale a pena criar tópicos pra isso.

• A história é curiosamente confusa e, ao mesmo tempo, clara. Eu acho que essa é a parte mais complexa de explicar, mas, em muitos momentos da leitura (me encontro no volume 7 dos 13 da coleção no momento), eu sempre me pego pensando “Mas que p***a tá acontecendo??”, enquanto que, em outros, a leitura é fluida e suave.
• A arte do Liam Sharp é SURREAL. E eu digo isso em ambos os sentidos, figurado e literal. O cara desenha muito mesmo, mas, ao mesmo tempo, esses desenhos são uma coisa bizarra, que parecem combinar com os roteiros do Morrison num nível inacreditável. Tem páginas que possuem tantos detalhes que eu perco um tempo interpretando o que tá rolando só pra não deixar nada passar.
• O letreiramento original foi feito pelo mestre Tom Orzechowski, um dos meus ídolos na arte de fazer balões, e a parte brasileira foi cuidada pela mestra Valéria Calipo, que é a minha letrista brasileira favorita (ao lado da Lilian Mitsunaga, claro), e os dois conseguem fazer um trabalho tão incrível que eu nem sei como pôr em palavras. É cada diagramação única nos balões que eu me sinto ainda mais motivado a seguir nesta área no meio dos quadrinhos!
• Os DIÁLOGOS possuem uma quantidade IMENSA de DESTAQUES. A cada duas frases, TRÊS DELAS possuem ALGUMA PALAVRA em NEGRITO. E, às vezes, nem é coisa tão IMPORTANTE assim. Ou talvez SEJA. Vai ENTENDER a CABEÇA do Morrison nessas horas? (E eu digo isso porque, quando escrevo as minhas histórias, também tenho o costume de dar destaque demais às palavras.)
• O Morrison parece ser um cara que realmente conhece o que tá fazendo. O bicho encheu esses trecos de referências e personagens antigos do Universo DC. Eu tenho pesquisado muito pra saber melhor quem é quem e o cara realmente não parece ter colocado as personagens ali de propósito, sabe?

O saldo que estou tendo até o momento é: drogado sem nunca ter usado drogas. Aliás, tem até um lanterna hipster no meio disso tudo que só confirma o quão DOIDO o negócio é.
Mas eu tô amando! Acho que é justamente por ser tão único e diferente de tudo que já tinha lido antes.
Vocês já leram essa loucura que é Lanterna Verde?

domingo, 13 de março de 2022

A vida secreta de Stan Lee

Ele revolucionou os quadrinhos e virou um ícone da criação de super-heróis. Mas também acumulou rixas por não dar crédito aos parceiros de criação. Conheça o lado B do símbolo-mor da Marvel, que faria 100 anos em 2022.

Por Rafael Battaglia para a revista Superinteressante
18 de fevereiro de 2022, 07h43

Stan Lee, pelo traço de Thobias Daneluz.

Stanley Martin Lieber nasceu em 28 de dezembro de 1922, em Nova York. Era filho de Jack e Celia, imigrantes judeus que fugiram de uma Romênia assolada pela crise econômica e por uma onda de antissemitismo.
Consumidor voraz de qualquer tipo de mídia – tiras de jornal, programas de rádio, cinema… –, Stanley ganhou, como um dos primeiros presentes de sua mãe, um suporte de livros, para que pudesse ler enquanto comia. E na escola, participando de concursos de redação, descobriu o gosto pela escrita.
A família vivia com o orçamento apertado – o pai custava a conseguir empregos estáveis nos EUA da Grande Depressão dos anos 1930. Stanley, então, fazia todo tipo de bico: foi entregador de sanduíches, lanterninha de cinema e, mais em linha com seu talento, redator de obituários antecipados de celebridades.
Naquele começo do século 20, quadrinhos ainda eram vistos como uma arte de quinta categoria. O jogo só virou em 1938 com a HQ Action Comics #1 – a estreia do Superman. Essa revista mensal da National Allied Publications (futura DC Comics) inaugurou o gênero de super-heróis, alcançou milhões  em vendas e virou o mercado de cabeça para baixo.
Foi nesse cenário efervescente que Stan, ainda moleque, começou a trabalhar com quadrinhos. Mas sua entrada do ramo não foi exatamente por mérito. Foi nepotismo mesmo. Martin Goodman, chefão da Timely Comics (futura Marvel), era casado com uma de suas primas e deu um emprego ao garoto.
Goodman estava longe de ser um visionário. Empresário do ramo de distribuição de revistas, criava empresas de fachada para fugir de impostos e prezava pela quantidade, e não qualidade, dos seus produtos – se algo estava fazendo sucesso, bastava copiar. Com os super-heróis, não foi diferente. Em 1939, a Timely lançou a HQ Marvel Comics #1 com os primeiros heróis da casa, Namor e Tocha-Humana, e contratou quadrinistas para desenvolver histórias para a editora. Dentre eles, Jack Kirby e Joe Simon, que criaram o Capitão América, em 1940.
O primeiro cargo de Stan por lá foi como assistente de Joe Simon. Ele fazia entregas, apagava traços de lápis em artes finalizadas, pegava café. Quando as tarefas acabavam, ficava tocando flauta doce no escritório. A virada veio num dia qualquer de 1941. Simon, sobrecarregado, passou a Stan a tarefa de escrever uma história curta para o Capitão América. E ele arrebentou. Lee teve a ideia de o Capitão usar seu escudo como bumerangue (algo que desafia as leis da física, mas que virou a marca do herói). Na hora de assinar, preferiu a versão contraída de seu nome: “Stan Lee”. E não parou mais de escrever.
Enquanto o jovem dava seus primeiros passos, Kirby e Simon estavam revoltados com Goodman: o chefe não tinha dado a eles a porcentagem de lucro prometida (25%) das vendas dos gibis do Capitão. Passaram, então, a trabalhar escondidos para a rival – a National.
Não tinha como dar certo: a dupla logo foi descoberta e demitida. Bom para Lee, que, com apenas 19 anos, assumiu como editor da HQ e passou os meses seguintes escrevendo diversas histórias para a Timely.
Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, Stan serviu o Exército redigindo materiais educativos. Em 1945, voltou para Nova York com uma ideia surpreendente: sair do ramo de quadrinhos. Não foi um surto momentâneo, mas sim algo que o acompanharia por toda a vida. “O engraçado é que eu nunca fui um leitor de quadrinhos”, diria mais tarde, em 1999. “Eu só escrevia.”
Nessa tentativa de virada profissional, Lee tentou começar um negócio de livros didáticos e fez trabalhos para rádios. Enquanto isso, passou a supervisionar cada vez mais os quadrinhos da Timely – e a escrever, de fato, cada vez menos. No final dos anos 1940, Goodman percebeu que valia mais a pena trabalhar com freelancers e mandou Stan demitir toda a redação.
Em 1947, o quadrinista conheceu a modelo inglesa Joan Clayton Boocock. Eles se apaixonaram e casaram poucos meses depois. Dessa união, em 1950, nasceu Joan Celia (ou, como ficou conhecida, JC). O nome foi uma homenagem à mãe de Stan, que morreu três anos antes. O casal teve ainda uma segunda filha, Jan, mas que não sobreviveu ao dia do parto.
Apesar das perdas, a família Lee teve uma vida estável nos anos 1950. Eles viviam numa casa espaçosa em Long Island, nos arredores de Nova York, e organizavam festas com frequência. Mas Stan seguia frustrado com o trabalho.
E, verdade seja dita, o mercado também não colaborava. Naquela década, críticos ao fenômeno das HQs diziam que elas eram as responsáveis pelo mau comportamento dos jovens – algo semelhante ao que acontecia com os discos de rock nessa mesma década.
O ápice da repressão foi em 1954, quando se instituiu um código de conduta para as revistas. As histórias não poderiam, por exemplo, mostar “sinais de violência exacerbada”. Como acontece em qualquer cenário de censura, a criatividade acabou tolhida. Os gibis de heróis perderam força e as vendas diminuíram.
Stan e a Timely então focaram em outros enredos, como faroestes e romances leves. Em 1958, Jack Kirby voltou para a editora. Mas o clima não poderia ser pior: um mau negócio de Goodman o forçou a contratar a distribuidora Independent News, que pertencia à National. Isso limitou a circulação da Timely, que acabou cortando 80% de sua produção.
As coisas só melhorariam em 1961, quando o tal código de conduta já não apitava (tem lei que pega, tem lei que não pega…). Durante uma partida de golfe, Goodman ouviu um executivo da National se gabar de um novo sucesso da editora, a Liga da Justiça. Então não pensou duas vezes: correu e mandou Stan criar um time de super-heróis. Nascia ali o Quarteto Fantástico, que chegaria às bancas em novembro de 1961 – mesmo ano em que a Timely mudou de nome para “Marvel”.
A HQ marcou o início da revolução da Marvel nos quadrinhos. Na história, Reed Richards, Ben Grimm e os irmãos Sue e Johnny Storm ganham poderes após uma tempestade cósmica e se tornam o Quarteto Fantástico. A história era inovadora: os personagens viviam brigando, e as cenas em que eles adquirem suas habilidades eram agonizantes – quase um filme de terror.
Tanto Stan quanto Jack Kirby, cocriador do Quarteto, contam versões diferentes sobre a origem do supergrupo. A mais consagrada é a de Lee, que diz ter feito toda a concepção dos personagens, enquanto Kirby cuidou só do visual. Kirby, por sua vez, afirmava ser responsável também por boa parte das histórias, não apenas das ilustrações. Essa questão se repete na avalanche de personagens que vieram depois: Hulk, Thor, Homem-Formiga, Homem de Ferro, os X-Men, Doutor Estranho e Homem–Aranha – no caso desses dois últimos a rusga pela primazia criativa foi com outro parceiro, o quadrinista Steve Ditko.
O cerne desse problema está no que ficou conhecido como “Método Marvel”, consolidado nos anos 1960. Normalmente, escritores entregam a ilustradores um roteiro bem detalhado da HQ, com enredo, diálogos e indicações do que vai entrar em cada quadrinho. Lee bolava sinopses das histórias e as entregava para Kirby, Ditko e outros artistas, que desenvolviam a trama a partir daí; Lee, por fim, adicionava os balões de diálogo.
Só que havia uma falha aí: o método escondia a dupla função dos desenhistas, que, ao desenvolver as histórias, também faziam as vezes de roteiristas. Para completar, a editora não tinha o hábito de registrar reuniões, esboços e outros bastidores das revistas. Prevaleceu, então, a narrativa de que Lee era o principal cérebro por trás das criações. A falta de crédito apropriado levou Ditko a deixar a Marvel em 1965 e a nunca mais trabalhar com Stan.

O fenômeno…

As histórias da Marvel chacoalharam a cultura pop. Os heróis, antes tratados como figuras divinas, eram agora mais humanos – e falhos. O Quarteto Fantástico retratava uma família disfuncional. Os X-Men funcionavam como uma analogia à segregação racial dos EUA. E Peter Parker era um quebrado com o aluguel atrasado. A identificação dos leitores foi automática – e as vendas explodiram.
A “revolução Marvel” passou a ser destaque em jornais, revistas e programas de rádio. Lee era o porta-voz da editora – outros artistas quase nunca eram mencionados. Ele se firmou como o carismático rosto da Marvel. Dava palestras em universidades e recebia na redação celebridades que eram fãs dos gibis. No escritório, era visto jogando golfe com copos no lugar dos buracos, e não raro subia nas mesas para imitar os movimentos que ele queria que os heróis fizessem nas páginas.
Seu maior trunfo foi a maneira de se comunicar com os leitores. Ele idealizou a criação de um fã–clube oficial da Marvel e batia ponto na seção de cartas das revistas. Ali, agradecia aos elogios, tirava dúvidas e narrava o dia a dia da redação – tudo isso em textos recheados de piadas, trocadilhos e que terminavam com “Excelsior!” (“sempre em frente”, em latim), seu lema de vida. O que empresas fazem hoje nas redes sociais, tentando se aproximar do público, Stan já tirava de letra.

… E o marasmo

Em 1968, Goodman se aposentou e Stan virou presidente da Marvel. Foi também o ano em que seu pai, Jack, morreu. Os motivos nunca foram esclarecidos (uma hipótese é a de que ele teria cometido suicídio devido a um erro médico na dosagem de antidepressivos). Stan se sentiu culpado pela tragédia e se afastou da família – incluindo de seu irmão, Larry, que escreveu e desenhou histórias para a Marvel até 2018. As conversas com ele eram, quase sempre, restritas a motivos profissionais.
Nos anos 1970, Stan se afastou do desenvolvimento das histórias. Sem Kirby, que trocou a Marvel pela DC, Lee investiu em publicações de gosto duvidoso, como uma revista de celebridades comandada pela esposa, Joan. Nenhuma das empreitadas fora do mundo dos super-heróis vingou.
Em 1980, Stan e a família se mudaram para Los Angeles. O plano era desenvolver filmes e séries em Hollywood por meio da divisão Marvel Productions. Mas, mesmo que Stan fosse ovacionado por fãs de HQs, ele ainda era um desconhecido em meio aos figurões do show business. Encontros com artistas e chefões de estúdio raramente rendiam, e suas tentativas de criar live actions da Marvel para o cinema não emplacavam.
Em 1994, Stan assinou um contrato vitalício com a Marvel. Aos 72 anos (e morando do outro lado do país há 14), ele já não apitava mais nas decisões da editora, mas continuou a representar a marca em eventos e entrevistas. Só que as coisas logo se complicaram. No ano seguinte, investimentos errados do chefão da Marvel, Ron Perelman, fizeram a empresa entrar com um pedido de falência, com quase US$ 1 bilhão em dívidas.
Para sair da pindaíba, a companhia fez um saldão dos direitos de seus personagens mais famosos para estúdios de Hollywood – pagando pouco, pelo jeito, eles topavam a ideia de pensar em filmes com os heróis da Marvel. A companhia precisou também renegociar contratos – como o de Lee, que ganhava US$ 1 milhão para, bem… não fazer nada. O novo acordo oferecia US$ 250 mil anuais, mas Stan recusou. O valor não dava conta do estilo de vida que ele havia adquirido – Joan e a filha eram consumidoras compulsivas, o que sempre forçou Stan a continuar trabalhando.

Péssimos negócios

Stan e a Marvel chegaram a um acordo no final de 1998, mas o desgaste o fez considerar novos voos. Ele criou a empresa Stan Lee Media (SLM) para desenvolver produtos para cinema, TV e internet (ainda uma novidade).
O parceiro de Stan nessa empreitada foi Peter Paul, um advogado que conheceu em eventos beneficentes em Los Angeles. Com a ajuda de Paul, a SLM entrou na bolsa de valores, teve mais de 140 funcionários e US$ 300 milhões em valor de mercado (US$ 100 milhões a mais que a Marvel).
Mas tudo foi por água abaixo. No final de 2000, as ações despencaram e quase todos os funcionários foram demitidos. Mais tarde, descobriu-se que Paul era um golpista, que divulgava relatórios falsos para inflar as ações da SLM. Acabou fugindo para o Brasil para escapar dos processos, mas foi preso pela Interpol.
Stan e alguns remanescentes da SLM, então, fundaram a POW! Entertainment numa tentativa de juntar os cacos. Fundada em 2001, ela atirou para todos os lados. Desenvolveu animações (Stripperella, sobre uma stripper que combate o crime), cosméticos (uma colônia do Stan Lee vendida a US$ 25), reality shows e mais uma série de projetos que nunca decolaram – como um desenho em parceria com a Playboy. A POW! existe até hoje, mas nunca lançou um hit.

Sanguessugas

Os últimos anos de Stan Lee foram conturbados. Por um lado, ele se tornou mais famoso do que nunca com suas participações em filmes e séries da Marvel (foram 60). E era o centro das atenções quando aparecia nos eventos de estreia dos longas – embora nunca ficasse até o final para assisti-los.
Mas as aparências da vida pública estavam longe da verdade. Ingênuo, Stan acabou cercado de interesseiros. “Um por um, indivíduos de moral instável foram entrando na vida dele, prometendo riqueza, desde que ele não fizesse muitas perguntas a respeito de como isso seria feito”, escreve Abraham Riesman na biografia Invencível: a ascensão e a queda de Stan Lee, lançada em 2021.
Um desses indivíduos foi Mark Anderson, um segurança que virou amigo de Lee e sugeriu que o escritor poderia lucrar com suas aparições públicas. Junto a ele, Lee passou a cobrar centenas de dólares por autógrafo – e milhares por participações em convenções (mais tarde, descobriu-se que Anderson chegou a roubar objetos pessoais de Lee).
Mas talvez o relacionamento mais desgastante de Stan tenha sido com sua filha. JC Lee sempre gerou preocupação: tinha problemas com álcool e vivia às turras com os pais – geralmente, para pedir mais dinheiro. No 64º aniversário de JC, insatisfeita com um presente que ganhou de Lee (um carro), agarrou o pai pelo pescoço.
Stan morreu no dia 12 de novembro de 2018, aos 95 anos, após uma parada cardíaca. No final, sua vida foi tão imperfeita quanto a dos personagens que o consagraram – e quanto a de cada um de nós. Com uma diferença: Stan foi mestre em cultivar a própria imagem. A p0nto de suas aparições-relâmpago na tela, em suas últimas décadas de vida, causarem tanto fascínio quanto os heróis da mitologia contemporânea que deu ao mundo.

domingo, 6 de março de 2022

Do rádio à TV e, então, às tiras de jornal: Dragnet

Os atores Jack Webb e Harry Morgan.

DRAGNET FOI PROVAVELMENTE o motivo pelo qual seriados como C.S.I. [C.S.I.: Investigação Criminal], Law & Order [Lei & Ordem], Criminal Minds [Mentes Criminosas], entre vários outros seriados do gênero “investigação forense”, hoje possuam fama. Sua primeira versão foi lançada para o rádio, indo ao ar entre 1949 e 1957 na rádio NBC. O criador da série, Jack Webb, teve a ideia de lançar um programa que trouxesse um foco grande no dia a dia dos detetives e investigadores, mostrando como o trabalho policial tinha o “repetitivismo” e a penosidade, mas também os perigos e os dramas derivados de cada caso com o qual a força de segurança tinha de lidar. Funcionou.
Webb prezava pelo realismo da série, e esse foi o principal fator pelo seu sucesso. Ele participava ativamente de visitas à delegacias, e até participou de cursos da Academia de Polícia só para aprender termos e detalhes que ele poderia vir a utilizar em seu personagem, o sargento Joe Friday. Webb chegou a incluir detalhes reais como os nomes de oficiais e chefes do Departamento de Polícia de Los Angeles — cidade em que a série era ambientada.
Mas talvez o que mais marcou a série foi seu anúncio inicial, feito por George Fenneman em uma voz única: “Senhoras e senhores: a história que vocês irão ouvir é verdadeira. Somente os nomes foram alterados para proteger os inocentes.” A introdução era seguida de passos e da voz de Webb explicando as situações iniciais: “Terça-feira, dia 4 de julho. Fazia frio em Los Angeles. Estávamos trabalhando num caso de assassinato. Meu parceiro é Ben Romero. O chefe dos detetives é Ed Backstrand. Meu nome é Friday.” Todos os episódios possuíam o mesmo começo, apenas alterando datas, climas e alguns detalhes de descrição. Junto a tudo isso, o tema de Dragnet, Danger Ahead! [“Perigo à Frente!”] era escutado — tema este que foi problema de tribunal, tendo Walter Schumann, o compositor da música, sido acusado de plágio pelos publishers do filme The Killers (1946). De acordo com os publishers, Schumann tinha visitado o estúdio de gravação do filme, e acabou ouvindo uma parte do tema, gravado por Miklós Rózsa. A solução veio com um acordo que dividia os direitos do tema de Dragnet entre Schumann e os publishers.


O SUCESSO DE DRAGNET no rádio foi tão grande que, dois anos após sua estreia no rádio, o programa migrou para a TV. Filmado nos Estúdios Walt Disney, a série de TV elevou Dragnet a um novo patamar. Mesmo em preto e branco, agora era possível ver todas as ações e reações narradas no rádio. Além disso, a série trazia as mesmas identidades que já usava em áudio, além dos mesmos atores. A mesma NBC foi a produtora responsável.
Uma curiosidade interessante de se notar é que Webb não queria atuar na TV: ele chegou a recusar o papel de Joe Friday, indicando inclusive um ator para tal — o famoso Lloyd B. Nolan —, mas acabou sendo convencido pela própria NBC a realizar o papel, afinal já era conhecido pelo público do rádio e, talvez, poderia ocorrer uma falta de identificação por parte do mesmo caso a mudança fosse feita.
A série foi longa. Com um total de 276 episódios, distribuídos em 8 temporadas, ela saiu, ano após ano, entre 1951 e 1959. E essa foi apenas a primeira versão. Outras três viriam — a segunda, lançada entre 1967 e 1970, teve 4 temporadas e 98 episódios; a terceira (nomeada de O Novo Dragnet) saiu entre 1989 e 1990, com duas temporadas de 26 episódios cada; e a última e mais recente, L.A. Dragnet, em 2003, teve somente duas temporadas, mas com apenas 22 episódios (sendo que os dois últimos nem foram ao ar nos EUA, pois a série foi cancelada prematuramente). Porém, nenhuma das subsequentes conseguiu o mesmo sucesso da primeira versão — mesmo com a segunda tendo o mesmo Jack Webb voltando ao seu papel clássico.

Imagem de divulgação da série de 1967, com
os atores Harry Morgan e Jack Webb.

O pôster de Dragnet, o Filme com
Dan Aykroyd e Tom Hanks.

Dragnet também foi parar nas telas de cinema em três ocasiões distintas: 1954, 1966 e, finalmente, 1987. Esta última foi a mais famosa: uma comédia do tipo buddy cop — estilo que traz duas pessoas com diferentes personalidades tendo de agir juntas em prol da resolução de um crime — com ninguém mais, ninguém menos que Dan Aykroyd como Joe Friday (que, aqui, é o sobrinho do Friday da série de TV) e Tom Hanks como Pep Streebek, parceiro de Friday. Rendeu 67 milhões de dólares de bilheteria mundial.

MAS O NOME DRAGNET não parou por aí. E foi em 23 de junho de 1952 que a tira baseada na série deu as caras nas páginas dos jornais dos Estados Unidos. Três artistas passaram pela tira: Joe Sheiber, que ficou até setembro daquele ano; Bill Ziegler, que assumiu logo após, mas não assinou seu nome até março de 1953, ficando na tira até janeiro de 1954; e Mel Keefer, que levou a tira até o fim, em maio de 1955. Os roteiros ficaram por conta de Jack Robinson, um dos roteiristas da série de TV.

A primeira tira de Dragnet, datada de 23 de junho de 1952.
Roteiro por Jack Robinson e arte de Joe Sheiber.
Tradução e letreiramento por Lucas Cristovam.

A tira, assim como a série de TV, também seguiu os mesmos passos do programa de rádio, e, a cada começo de arco, trazia os mesmos dizeres iniciais das versões já conhecidas. E ela teve sucesso em adaptar perfeitamente para os quadrinhos os detalhes que trouxeram sucesso ao rádio e à TV: todos os diálogos em sua forma eram semelhantes e as narrativas feitas por Friday estavam presentes como quadros com uma fonte de máquina de escrever. A arte da tira, simples e direta, também valorizava demais o todo — apesar de fontes dizerem que a mudança de artistas se deu porque Webb queria um que o desenhasse o mais “fiel e bonito” o possível, como ele “merecia ser desenhado”; de todos os artistas que passaram pela tira, Mel Keefer foi o que mais se aproximou disso.
Mesmo curta, a tira teve uma boa quantidade de histórias. Foram mais de 20 arcos durante os três anos de vida.

FELIZMENTE, É POSSÍVEL encontrar o programa de rádio, a série de TV e as tiras de jornal online. Os dois primeiros encontram-se facilmente no YouTube — 308 dos 314 episódios da série de rádio estão neste link, enquanto que 24 episódios de variadas temporadas da série TV estão neste link. A tira de jornal é encontrada no blog Newspaper Comic Strips, onde a contribuição foi feita por este que lhes escreve. Reuni todas as tiras que pude encontrar online e disponibilizei a série completa ao dono do blog — cujo objetivo é distribuir tiras de jornais dos mais variados anos para download, um blog importantíssimo para manter viva a memória desta mídia tão querida por mim.
Longa vida ao sargento Joe Friday e a Dragnet!

Lucas Cristovam, 18 de fevereiro de 2022,
Parnamirim, Rio Grande do Norte, Brasil.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

"Kissing a Fool", por George Michael: a Melhor Música do Ano de 2021

Capa do álbum Faith.

COM CERTEZA ESTA foi a música que eu mais escutei em 2021.
Abro 2022 falando sobre a canção Kissing a Fool, de George Michael em seu álbum de estreia nomeado Faith. A música foi um sucesso total, mesmo não sendo a de mais sucesso na época do lançamento. Sendo o único dos cinco singles que não ocupou o primeiro lugar da Billboard Hot 100 nos E.U.A. — os outros quatro sendo Faith, Father Figure, One More Try e Monkey —, chegou ao primeiro lugar da Hot Adult Contemporary Tracks.
Michael disse que escreveu a música a caminho do Japão para um tour do Wham! que aconteceria em 1985, porém, assim como aconteceu com outras músicas que ele escreveu na época, Kissing a Fool não podia ser usada para o Wham! por causa de algumas restrições pra imagem da dupla. Por isso ela só saiu em 1987, no primeiro álbum solo do cantor.
De acordo com Michael, “Eu não acho que fui influenciado por outros amigos sobre com quem eu devia ou não sair. Kissing a Fool não é sobre isso. É sobre um relacionamento que tive com alguém que eu não podia sustentar devido a quem eu era. Na época, a recepção da música me surpreendeu. Primeiro porque eu não sabia o quanto eu tinha conquistado e segundo porque eu não sabia que ela podia ter suas limitações. Eu a pensei naquele estilo para dançar agarradinho porque eu acho que aquele período musical estava rejeitando isso. É uma daquelas músicas pra se ouvir juntos tarde da noite.”
Deixo abaixo a música e sua tradução — como de praxe quando trago músicas neste blog.


"Beijando um Tolo", por George Michael

Você está distante
Quando eu poderia ter sido sua estrela
Você deu ouvido às pessoas
Que te assustaram e afastaram do meu coração
Estranho que você foi tão forte
Por ter até começado
Mas você nunca vai encontrar
Paz interior
Até que ouça o seu coração

Pessoas
Você nunca pode mudar o jeito que sentem
Melhor deixá-las fazer o que elas desejam
Para o bem delas
Se você deixá-las
Roubarem seu coração de você
Pessoas
Sempre farão um apaixonado parecer um tolo
Mas você sabia que eu te amava
Nós poderíamos ter mostrado a todos
Nós deveríamos ter visto o amor além de tudo isso

Iludiu-me com lágrimas em seus olhos
Cobriu-me de beijos e mentiras
Então adeus
Mas por favor não leve meu coração

Você está distante
Mas eu nunca serei sua estrela
Eu catarei os pedacinhos
E repararei meu coração
Talvez eu serei forte o bastante
Eu não sei por onde começar
Mas eu nunca encontrarei
Paz interior
Enquanto eu ouvir o meu coração

Pessoas
Você nunca pode mudar o jeito que sentem
Melhor deixá-las fazer o que elas desejam
Para o bem delas
Se você deixá-las roubarem seu coração
E pessoas
Sempre farão um apaixonado parecer um tolo
Mas você sabia que eu te amava
Nós poderíamos ter mostrado a todos

Mas lembre-se disso
Qualquer outro beijo
Que você der
Enquanto nós dois vivermos
Quando você precisar da mão de outro homem
Alguém para quem você possa realmente se render
Esperarei por você
Como sempre faço
Há algo aí
Que não se pode comparar
Com nada mais

Você está distante
Quando eu poderia ter sido sua estrela
Você deu ouvido às pessoas
Que te assustaram e afastaram do meu coração
Estranho que eu estivesse tão errado
Em pensar que você me amava também
Eu acho que você estava beijando um tolo
Você devia estar beijando um tolo

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Roy Thomas sobre o fim da tira do Homem-Aranha

O lendário Roy Thomas.

EM ALGUM PONTO nos primeiros meses dos anos 2000, eu mandei uma mensagem pro Stan Lee dizendo que adoraria fazer algum trabalho pra
Stan Lee Media — a companhia bem-divulgada, multi-equipe, online do Stan — se ele precisasse de mim. Ele me respondeu que, além de que ele gostaria de trabalhar comigo novamente, eu teria de estar em algum lugar de Los Angeles para trabalhar pra SLM, mas também disse que, por coincidência, ele realmente precisava de um escritor pra trabalhar com ele na tira de jornal O Espetacular Homem-Aranha, pra resumir e escrever o primeiro roteiro da tira de sete dias do [Sindicato] King Features. Eu disse que achava tranquilo (mesmo que eu nunca tivesse trabalhado escrevendo mesmo o Homem-Aranha como trabalhei escrevendo o Quarteto Fantástico, os Vingadores, o Conan, etc.). Ele respondeu com uma risada dizendo que talvez eu devesse esperar até ouvir a oferta que ele tinha, porque o dinheiro era pouco: só 300 dólares semanais. Eu ri e disse a ele que ele não tinha ideia do quão pouco me custava pra viver no meu terreno de 40 acres[1] no meio da Carolina do Sul. Então, um negócio foi rapidamente feito, e eu comecei a trabalhar, com minha primeira tira (uma de segunda, é claro) saindo no dia 17 de julho de 2000.

A tira de 17 de julho de 2000. A tira de 16 de julho, domingo, trazia
no último quadro que dizia o que aconteceria a seguir os dizeres:
"Um novo começo".

Conforme o andar da coisa, mesmo não recebendo um aumento em 18 anos e meio, eu basicamente escrevi a tira de forma anônima (porém, até os últimos anos, com as mãos de Stan editando), mas foi uma jornada ótima. Eu gastava talvez uns dois dias do mês escrevendo quatro semanas de tiras, e outros dois ou três dias no ano escrevendo quais seriam as próximas histórias.
Depois que o Stan parou suas atividades há alguns anos, após ter de instalar seu marcapasso, trabalhei primeiramente com seu assistente antigo Michael Kelly, com algumas indiretas verbais do próprio Stan, e, de certas formas, eu gostava ainda mais de trabalhar assim, já que Stan e eu estávamos apenas 80% na mesma página sobre o que fazia uma tira de jornal ser boa. Apesar da sua conhecida (e correta) visão do quão importante a escrita era para o sucesso da Marvel Comics de 1961 pra frente, ele falava constantemente sobre como era a arte que vendia bem uma tira de jornal. Eu não achava que isso refletia as realidades da situação, particularmente depois que o John Romita saiu da tira, alguns anos depois do começo dela, e como as tiras foram diminuindo e diminuindo cada vez mais nos jornais. O irmão de Stan, Larry Lieber, era um desenhista experiente (e Alex Saviuk era consideravelmente melhor), mas os artistas não tinham muito espaço, especialmente com as tiras diárias, pra fazer o tipo de arte que iria empolgar os leitores do jeito que, por exemplo, Milton Caniff conseguiu fazer em sua Terry and the Pirates [Terry e os Piratas]. Uma cena com o Aranha ou o Dr. Octopus numa tira pode atrair algumas pessoas, mas a escrita devia trazer os leitores de volta, dia após dia, já que o Aranha e o Peter e a MJ e o Dr. Octopus seriam basicamente sempre os mesmos, apertados em painéis pequenos — sem chance de termos uma página inteira como teríamos nos gibis. E, sim, eu escrevi um pouco mais de texto e diálogo do que ele fez, mas era algo parcial, porque eu não tinha a certeza de que as pessoas iriam acompanhar a tira diariamente, ou pelo menos, nenhum novo leitor iria começar a acompanhar a tira se ela fosse difícil de ser lida a partir de qualquer momento [de uma história].
Na maioria das vezes, entretanto, o Stan e eu nos demos muito bem. Na maior parte do tempo, ele gostava do que eu enviava, aceitando a maioria (mas não todas) das ideias que eu tinha para as histórias, e até alguns anos atrás frequentemente “sugeria” (ou insistia em) alterações nelas. Por alguns anos, ele chegou a reescrever um painel ou balão aqui e ali, ou até mais, enquanto que outras diárias ou dominicais passavam direto sem nenhuma mudança.
A maior mudança que eu tentei realizar, depois do primeiro filme do Homem-Aranha, foi tentar voltar num tempo quando a Mary Jane e o Peter não eram casados. Stan concordou e parecia até entusiasmado sobre a mudança no começo, e fizemos uma história inteira (envolvendo o Electro) com essa premissa. Mas quando o Stan mudou de ideia, eu percebi de cara que não seria capaz de reverter tudo. Então eu escrevi uma cena do tipo
Dallas[2] em que Peter acordava (depois de ir dormir no apartamento da tia May estando solteiro) e descobria que estava casado (de novo) com a Mary Jane, e foi assim que a gente manteve os dois desde então. E, na verdade, eu fiquei plenamente satisfeito com aquilo, pois foi uma alternativa às enrolações feitas nos gibis, em que o casal esqueceu completamente um ao outro e seu casamento, e sabe-se lá o que aconteceu entre ambos. Deixado inteiramente às minhas capacidades, e baseado na carreira de modelo da Mary Jane nos gibis, eu gradualmente a retirei do trabalho que ela tinha numa loja de computadores para fazer com que ela se tornasse uma estrela da Broadway e uma atriz de filmes, fazendo o papel de uma super-heroína chamada Marvella (antes mesmo da Capitã Marvel ser o que ela é hoje, ou talvez foi durante o período em que ela começou a ser), mas mantive ela junto ao Peter, de certa forma incongruente, em seu relativamente pequeno apartamento no Manhattan (exceto quando eles foram pra Los Angeles, claro), mas às vezes eles faziam compras caras.
Nos últimos anos, eu aumentei consideravelmente o número de participações especiais na tira: Wolverine, Homem de Ferro, Thor, Viúva Negra, Homem-Formiga, e, mais recentemente, o Punho de Ferro e o Luke Cage. A gente nunca se preocupou em tentar seguir a atual continuidade da Marvel, pois o Stan não queria mesmo fazer isso, exceto que, eu suponho, de tempos em tempos a gente dava umas pausas bruscas ou recomeços, como o exemplo dito do Peter e Mary Jane não estarem casados. Se existiam eventualmente múltiplos universos de Homens-Aranha nos quadrinhos (com diferentes Homens-Aranha, Mulher-Aranha, entre outros), bom, nosso universo na tira era somente mais um, porém o único, nos tempos mais recentes, em que Peter e Mary Jane ainda estavam juntos e casados, continuando a direção original tomada anos atrás nos gibis. A gente tinha muito orgulho disso.
Quando a tira morreu (ou melhor, foi morta), o Teatro Mammon em que a Mary Jane estava se apresentando foi fechado por conta de um dano crítico (claro, causado por uma luta do Homem-Aranha), e o “Marvella 2” acabou cancelado, então o casal decidiu viajar pra Austrália para tirar umas férias, e eu escrevi algumas semanas dessa continuação (com a aprovação total do Michael Kelly) envolvendo o vilão Kangaroo [Canguru]. Então, a Marvel decidiu encerrar a tira e não imprimir as últimas semanas, e eu me recusei a escrever as últimas tiras de modo a torná-las num “adeus”. Meu sentimento era que eu tinha aceitado o farelo da tira, então não tornei algo pessoal. Foi apenas um negócio — mesmo acontecendo que, quando eu soube que a tira ia acabar, eu não fiquei sabendo que, talvez porque aqueles que me disseram a notícia não sabiam dessa parte, a Marvel estava planejando ou reviver a tira com uma nova equipe criativa ou começar uma nova tira que não seria apenas do Homem-Aranha, mas algo mais parecido com o que a DC fez com a tira
The World’s Greatest Superheroes [Os Maiores Super-Heróis do Mundo], que tinha a participação de diversos dos heróis da DC (e, futuramente, passou a focar apenas no Superman). Eu senti que tinha escrito o que precisava ser escrito pra tira, e eles tinham a liberdade de fazer o que quiser com o roteiro (desde que eu fosse pago por aquilo que tinha feito originalmente), mas preferi não mexer mais. Quando eu termino alguma coisa, eu realmente termino essa alguma coisa.
Alex Saviuk, que seja abençoado, graciosamente redesenhou a última tira para mostrar nós dois juntos, e adicionou uma manchete com
“‘Nuff said!” no Clarim Diário. Talvez ele fosse mais prático para as coisas do que eu, e eu realmente o admiro por isso, já que ele gastou mais de duas décadas desenhando a tira dominical do Aranha e ainda tinha sido promovido a desenhar também as diárias perto do fim, só pra ver a tira ser cancelada pouquíssimo tempo depois, deixando-o sem um trabalho regular. Eu espero mesmo que ele encontre um. Ele merece.

A última tira do O Espetacular Homem-Aranha, datada de 23 de março
de 2019. Roteiro de Roy Thomas e arte de Alex Saviuk.

Naturalmente, eu senti muito pelo fim da tira (ainda mais porque isso significava o fim da única tira de aventura que ainda saía e que tinha sido lançada depois da metade do século passado), assim como também pelo fato de que nunca pude receber o crédito nas tiras pelo trabalho que nelas eu fiz — mesmo que eu, é claro, tenha feito aquelas tiras de Conan the Barbarian [Conan, o Bárbaro] no fim dos anos 1970. Mas, pelo menos, sei que certa vez Stan escreveu vagamente, talvez há uma década, em sua introdução ao livro Marvel Visionaries: Roy Thomas [Os Visionários da Marvel: Roy Thomas], que eu “o ajudava” com a tira do Aranha. Todo mundo com meio cérebro sabia com o que eu contribuía com a tira, de todo jeito. Aquilo não incomodou o Stan, nem me incomodou. A tira era criação do Stan, e eu estava feliz de escrevê-la, mesmo tendo de usar o nome dele, mas eu não gostaria de seguir fazendo essa escrita anônima depois que ele faleceu, se essa alternativa me tivesse sido feita.
Trabalhar com o Stan Lee e o Michael Kelly, assim como com Larry Lieber, Alex Saviuk e o incrível Joe Sinnott — que foi ocasionalmente auxiliado por Jim Amash ou Terry Austin — na tira do Homem-Aranha foi uma experiência muito boa, e eu sou grato ao Stan por ele ter me oferecido esse “negócio” lá em 2000. A tira se tornou a última de nossas muitas colaborações, entre as várias que fizemos, que começou quando, no começo de julho de 1965, eu escrevi uma história de Modelling with Millie [Modelando com Millie], com arte do Stan Goldberg, que teve toda a supervisão feita por ele [o único Stan Lee].

Roy Thomas escreveu está carta
para o Bleeding Cool em 2019.

_____
Notas:
[1] 161.874 metros quadrados.
[2] Exibida entre 1978 e 1991 nos Estados Unidos, a série de TV Dallas foi de grande sucesso, tendo um total de 357 episódios distribuídos em 14 temporadas. Roy faz referência à série pois a nona temporada se revelou, no fim, somente um sonho de uma das personagens.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Um dia por vez: a tira de jornal do Espetacular Homem-Aranha

Matéria originalmente publicada na revista da editora TwoMorrows Back Issue #44, de setembro de 2010.

Por Dewey Cassell
Tradução por Lucas Cristovam

Painel de abertura da tira dominical do Homem-Aranha,
com arte de John Romita.

A PARTE MAIS DIFÍCIL era sempre a espera. Ao fim de cada edição do gibi O Espetacular Homem-Aranha, o teioso estaria prestes a ser derrotado pelas mãos do mais novo vilão, e eu teria de esperar até o próximo mês para descobrir como a história se desenrolaria. Era uma tortura sem medida, pelo menos para um garoto de 12 anos. Se ao menos eu pudesse ter uma dose diária do Aranha...
Com o sucesso contínuo do Homem-Aranha nos gibis, desenhos animados e outras mídias, não era surpresa que a Marvel tentaria se juntar à página de quadrinhos dos jornais como outra forma de espalhar a palavra do lançador de teias. De fato, o editor e roteirista Stan Lee e o artista John Romita Sr. da Marvel prepararam uma proposta para uma tira do Homem-Aranha por volta de 1970, com duas semanas de tiras tendo um vilão chamado Phantom Burglar [algo como “Ladrão Fantasma”], mas ela nunca decolou. Não foi até 1977 que o mascote da Marvel teve estreia nos jornais, uma cortesia do Sindicato Register e Tribune (que foi comprado posteriormente pelo Sindicato King Features).

A primeira semana de tiras do Homem-Aranha,
de 3 a 9 de janeiro de 1977.

Converter um gibi numa tira era mais difícil do que se pode pensar. O desafio tinha certa escala, como Stan Lee explicou na edição #1208 da Comics Buyer’s Guide [Guia do Comprador de Gibis]: “O maior problema era como fazer uma cena de luta numa tira de jornal. Se o Homem-Aranha desse um soco na cara de um personagem, você teria de esperar até o dia seguinte só para ver esse personagem cair no chão!”

STAN “THE MAN” E “JAZZY” JOHNNY

Para encarar tal desafio, Lee se juntou ao vivaz artista do Aranha, e também diretor de arte da Marvel, John Romita. Juntos, eles conseguiram “reduzir” Peter Parker às tiras, focando tanto em Parker como em seu alter ego. (Lee chegou até a dizer que a tira era uma “novela de super-herói”.) De certa forma, não é difícil assumir que a fórmula deu certo, dado que era o lado humano falho do Homem-Aranha que deixava o personagem tão carismático nos gibis.
Com o passar dos anos, a tira teve a participação de diversos heróis dos gibis da Marvel — incluindo o Doutor Estranho, o Demolidor e Namor —, assim como os vilões clássicos do teioso — como o Doutor Destino, Kraven o Caçador, o Rei do Crime, Mystério e o Doutor Octopus —, mas as temáticas da tira eram inteiramente únicas. Alguns personagens de apoio, como Flash Thompson e Harry Osborn, apareceram nos primeiros anos da tira, mas desapareceram com o passar do tempo. Parte da ideia de não manter uma continuidade com o universo dos gibis é tida porque os leitores de jornal podem não ter tanta familiaridade com o que acontece nas revistas. Só tiveram três ocasiões em que a tira foi direta e paralelamente ligada aos gibis. A primeira vez foi com o casamento de Peter Parker e Mary Jane Watson, em junho de 1987. A versão em gibi foi publicada como O Espetacular Homem-Aranha Anual #21, e até uma celebração ao vivo foi feita no Shea Stadium, com o próprio Stan Lee sediando o evento. A segunda ocasião foi com o arco “Homem-Aranha: A Agenda Mutante”, que saiu entre dezembro de 1993 e março de 1994, tendo o Fera dos X-Men e o vilão Duende Macabro como participantes, no primeiro crossover entre dois formatos. A terceira e mais recente ocasião foi o arco “Brand New Day” [“Um Novo Dia”, no Brasil] de 2008, que reiniciou os personagens à época em que ambos não estavam casados. Entretanto, as reações dos leitores quanto às mudanças na tira de jornal foram tão negativas que Stan Lee decidiu que tudo aquilo era apenas um sonho ruim e restaurou a tira ao que ela era originalmente.

Página dominical de 21 de junho de 1987, com o casamento
de Peter Parker e Mary Jane Watson. Roteiro de Stan Lee
e arte de Flor Dery.

Algumas tiras do arco A Agenda Mutante, que foi um crossover entre a
tira e o gibi em 1994. 
Roteiro de Stan Lee e arte de Larry Lieber.

As três primeiras tiras do arco que reiniciou a vida de Peter Parker
nas tiras de jornal, lançadas entre 31 de dezembro de 2008 e 2 de
janeiro de 2009. Roteiro de Roy Thomas e arte de Larry Lieber.

Lee escreveu O Espetacular Homem-Aranha desde o começo. Os arcos variavam em tamanho, durando, em média, de oito a doze semanas, mas algumas histórias chegaram a sete meses enquanto que outras tiveram apenas dez dias. Tais arcos não possuíam título — mas, por um breve período, novas histórias começavam com um logo no primeiro quadro da primeira tira. Hoje, a narração ao fim do último quadro da tira dominical é o responsável por geralmente anunciar qual será a próxima história. Quando perguntado sobre como ele mantinha a tira atual e interessante depois de todos os anos, Stan respondeu, “É difícil, mas, ei, esse é meu trabalho. É por isso que eu escrevo quadrinhos ao invés de trabalhar num laboratório ou ser um astronauta”.
Romita ficou na tira pelos quatro primeiros anos, desenhando tanto as diárias quanto as dominicais, com ocasionais assistências de Fred Kida e John Verporteen. Romita desenhou diversos novos personagens que eram exclusivos da tira de jornal, incluindo vilões como o Rattler [Crotalus] e o Protector [Protetor], assim como um interesse amoroso para Peter Parker chamada Carole Jennings. Durante aquela época, Romita também manteve seu papel de diretor de arte na Marvel, suspeitando de que a tira não iria longe. Sobre se arrepender ou não de ter deixado a tira, Romita comentou em seu A arte de John Romita: “Tenho emoções mistas sobre ela. Era um trabalho complicado, mas eu amava a ideia de alcançar pessoas no mundo todo através de seus jornais diários”.

LARRY LIEBER E FRED KIDA

Romita foi sucedido durante um pequeno tempo por Larry Lieber, e então, subsequentemente, por Fred Kida, que desenhou as tiras diárias de agosto de 1981 a julho de 1986. Quando perguntado sobre como ele se envolveu com a tira diária de forma regular, Kida recorda: “Foi o John Romita que me pediu pra fazer”. E ele não achava que a tira era algo tão complexo assim. “Eu sempre gostei de desenhá-la. Não tinha nada de complicado [sobre a tira]”. Porém, ele chegou a um ponto em que não queria mais desenhá-la. Quando questionado sobre o motivo de abandoná-la, ele somente disse: “[A tira] tinha muita violência”.

A bela arte de Fred Kida em duas tiras datadas de 9 e 18 de junho de 1983.

Depois de Kida sair da arte, Dan Barry teve uma curta passagem na arte diária antes de Larry Lieber retornar em janeiro de 1987, onde se encontra até os dias de hoje. Floro Dery ficou por dez anos fazendo o lápis das páginas dominicais, seguido por uma série de artistas, incluindo Ron Frenz, Sal Buscema, Paul Ryan e Alex Saviuk, que desenhou a tira dominical começando em 1997 e segue nela até os dias de hoje, realizando a arte-final também. Outros arte-finalistas incluem Mike Esposito, Frank Giacoia, Joe Giella, Tom Morgan, Dave Simons e Joe Sinnott, que auxilia Saviuk hoje. Um grande número de artistas participou de forma anônima na tira com o passar dos anos, incluindo George Tuska.
De todos os artistas que desenharam a tira O Espetacular Homem-Aranha, nenhum deles é mais associado a ela do que Larry Lieber. Lieber já estava desenhando a tira O Incrível Hulk desde sua criação em 1978, mas não foi exatamente um começo suave com o Aranha. Lieber relembra: “Eu já havia tentado previamente, quando o Romita saiu, mas não fui capaz de manter o cronograma. Assim que você termina uma semana, já tem que começar com as artes da próxima. Eu não era rápido o suficiente. Então eu fiz algumas páginas dominicais aqui e ali por um tempo até que Fred Kida assumiu o cargo. Então, por algum motivo, ele quis sair, depois de um tempo. O Stan encontrou alguém pra seguir na tira, mas não deu certo. Então ele me perguntou se eu queria fazê-la. Tentei dessa vez e aí consegui manter o cronograma. Tanto que já estou fazendo a tira por 23 anos.”
O segredo pra manter tal cronograma finalmente provou ser um problema de entender seus limites, como Lieber comenta: “Comecei só fazendo o lápis da tira, enquanto outra pessoa finalizava, e, depois de um tempo, eu senti que queria finalizar sozinho. Não tinha feito a arte-final de forma profissional na indústria até então. Só os lápis. Mas senti que queria finalizar minha própria tira. E eu gostei do jeito que fiz porque refletiu pra onde eu estava querendo ir ao fazer o lápis, e era só continuar com a tinta. Mas era trabalhoso demais. Fiz esse trabalho por anos e, nos últimos anos, me encontrava sentado virando a noite na prancheta. Acabou se tornando algo pesado pra mim. Então finalmente deixei essa parte e outras pessoas estão no comando desde então.”

Três tiras diferentes com arte de Larry Lieber. Datas: 14 de março e 16 de julho
de 2007 e 31 de março de 2008.

Diferente do “método Marvel”, usado nos gibis, em que o artista recebia apenas uma sinopse da história, a tira de jornal é produzida com roteiro completo. Felizmente, Lee e Lieber, que são irmãos, se falam bem e com constância. Lieber comenta: “Recebo roteiros completos. Posso até fazer certas mudanças, se eu quiser, e tudo o mais, mas o roteiro é fechadinho, o que é ótimo. [Stan] me manda os roteiros e eu desenho, por isso ligo pra ele todas as semanas. Reduzo os lápis e mando para ele. Tento até enviar a tira já finalizada, mas às vezes não é possível, então ele vê apenas esboços, mas isso é o suficiente pra ele ver se eu desenhei a cena corretamente. Então ele comenta um pouco, e geralmente muda coisas nas falas, às vezes em alguns desenhos. Quando ele pedia certas mudanças, eu concordava. Eu posso ter sentido que talvez não era tão importante, mas pelo menos eu concordava. É um bom relacionamento que já dura anos.”
Mas é claro, a tira também apresenta algumas dificuldades. Sobre qual a coisa mais difícil em desenhar a tira, Lieber responde: “Pra mim, acho que é a mudança de aspecto da tira, que é meio romântica às vezes, quando Peter está com a Mary Jane, e eu preciso achar o clima pra torna-los atraentes e tento buscar as melhores expressões e poses, e também pensar de forma romântica, como um artista de romances. E então eu tenho de mudar para um artista de quadrinhos de super-herói. Você vai de um para outro — o que é o motivo que torna o Homem-Aranha um personagem desafiante, pois ele tem ambos os casos.”
Mas algumas dificuldades são resultadas da economia. Lieber adiciona: “Também tem o fato de a tira agora tem que ser bem, bem pequena para os jornais. É um desafio gigante tentar colocar algo como o Homem-Aranha em um espaço tão pequeno, por causa da natureza das histórias. Ele se balança em suas teias pelo meio da cidade e também sai subindo e descendo, escalando os prédios. E você ainda precisa deixar espaço pras letras e balões, tem os diálogos e narrativas, então não dá pra fazer algo pequeno demais ou seria ilegível. Então fazer isso tudo de um modo que dê pra compreender é bem difícil. Existem vários outros veículos e mídias para o Homem-Aranha que são visualmente empolgantes, e eu tenho minha pequena tira e preciso fazê-la interessante o suficiente para que os leitores queiram lê-la.”
“Não tenho um tempo tão grande, mas tento fazer alguns prédios realistas,” Lieber continua. “Eu não tento desenhar alguma rua em específico, mas tento fazer um prédio real que existiria em Nova Iorque. Tento dar o ‘sabor’ de Nova Iorque, com as roupas, a moda, mas não sou um dos modernos. Eu ainda gosto de certos padrões nas roupas, e hoje em dia as pessoas não usam muito esses padrões. Eu tento que seguir o que é feito na tira dominical o máximo que posso, porque é tudo contínuo, a mesma história, e a tira dominical é desenhada antes da diária. [Mas] muitos jornais não imprimem as duas, e se existe alguma variação, é melhor deixá-la entre uma dominical e uma diária do que entre uma diária e outra diária.”

Página dominical de 28 de dezembro de 2014, com lápis de Alex Saviuk
e arte final de Joe Sinnott.

Em certos aspectos, a tira dominical é mais fácil porque é colorida. “As cores são uma vantagem imensa, eu acho, pelo propósito de tornar algo mais claro. Se você tem uma camisa vermelha e calça verde ou algo, vai ser algo bem diferente com as cores, como se fossem coisas distintas mesmo. Mas, se está tudo em preto e branco, se você não tem as cores pra distinguir, então vai parecer uma coisa só, como se fosse um livro de colorir que não ganhou cor, a menos que alguma coisa seja totalmente preta. Pra tentar tornar diferente, é preciso adicionar sombras ou pintar tudo de preto. É preciso fazer isso pra tornar o desenho mais interessante no preto e branco.
Quando perguntado sobre ter um vilão favorito que ele gosta de desenhar, a resposta de Lieber é interessante: “Não um vilão. Meu personagem favorito pra desenhar é o [J. Jonah] Jameson. Eu adoro o Jameson. Ele é o mais divertido de fazer. Ele é humano demais e eu adoro as variedades de expressão que dá pra fazer. A Mary Jane — independente do que seja feito — é complicada, porque o primeiro critério é que ela precisa ser atrativa. Então não posso dar uma expressão qualquer que a deixaria menos atraente. E o Peter também precisa ser atraente. Então o Jameson é menos complicado por isso. Eu acho divertidíssimo explorar diferentes expressões. Geralmente, nos dias antigos, os artistas de quadrinhos tinham só duas expressões possíveis: ou um sorriso grande, ou uma cara de raiva com os dentes à mostra. Não existia meio termo. E, como dizem, ‘o meio termo não tem lugar nos quadrinhos’. Mas, nas tiras de jornais, existiram artistas que conseguiam fazer o meio termo. O que mais me influenciou foi o Stan Drake. Ele desenhou The Heart of Juliet Jones [O Coração de Juliet Jones]. Eu acho que ele foi o melhor que já existiu em fazer isso. A meta é ter uma combinação de sentimentos românticos de um Stan Drake com todo o poder de Jack Kirby.”
Por último, quando questionado se ainda gosta de fazer a tira O Espetacular Homem-Aranha, Lieber responde: “Sim. As pessoas me perguntam, ‘Você não fica entediado depois de tanto tempo?’, e eu não fiquei entediado porque eu considero a tira um desafio desde sempre. E eu acho que o que eu estou desenhando hoje é melhor do que o que eu desenhei quando comecei. Eu gosto do que fiz no passado, mas estou mais confiante agora. De certa forma, tem sido um processo de aprendizado. E, se você está aprendendo, não tem como ser entediante.”

SEGUINDO FIRME E FORTE

Durante o fim dos anos 1970, a Marvel lançou outras tiras de jornal relacionadas aos gibis, incluindo Howard the Duck [Howard, o Pato] (1977–1978), Conan the Barbarian [Conan, o Bárbaro] (1978–1981) e O Incrível Hulk (1978–1982). E a Distinta Competidora [DC] também se juntou à tendência no mesmo período, com The World’s Greatest Superheroes starring Superman [Os Maiores Super-Heróis do Mundo estrelando Superman] (1978–1985) e, posteriormente, Batman (1989–1991). Todas foram escritas e desenhadas por alguns dos melhores talentos da indústria, mas nenhuma provou ter o poder de vir pra ficar como a tira do Aranha.


Perguntado sobre o que torna a tira tão especial, Stan Lee responde: “Tem algo sobre o Peter Parker/Homem-Aranha que parece apelar para os leitores no mundo inteiro. Talvez seja o fato de que Peter é um personagem tão empático.” Fred Kida tinha sua própria perspectiva: “As pessoas gostam do Homem-Aranha. Ele é um herói que sempre faz coisas boas.” Larry Lieber chama um interessante paralelo para outra tira: “Pra mim, é incrível que Blondie [Belinda, no Brasil] esteja saindo por tantos e tantos anos como ainda sai e continua sendo interessante como foi no começo. Não tenho a certeza do porquê. Acho que foi por causa de um forte apelo e de fortes personagens que apelavam em qualquer lugar ou tempo. Acho que é a mesma ideia [com o Homem-Aranha]. Talvez as pessoas gostem mais do personagem, Peter Parker, um homem simples com sua esposa. Ele não é diferente. Tem lá suas peculiaridades, mas é como todo mundo.”

Nota: Após 42 anos de vida, a tira do Homem-Aranha teve seu fim em março de 2019. Larry Lieber se aposentou em 2018 e Alex Saviuk assumiu a arte até os últimos dias. Por mais que assinatura de Stan Lee estivesse presente na tira até o último dia, ele já não a escrevia desde 2000, sendo substituído pelo lendário Roy Thomas. Uma continuação foi prometida ao fim da tira, mas, até o presente momento, não foi cumprida nem pela Marvel nem pelo Sindicato King Features.

A última semana das tiras do Homem-Aranha, que saíram entre 17 e 23
de março de 2019. Roteiro de Roy Thomas, arte de Alex Saviuk e arte-final
de Joe Sinnott (na página dominical). A letrista foi Janice Chiang.

No Brasil, a editora Panini Comics está lançando os livros que compilam as tiras do Homem-Aranha desde o começo. Dois volumes foram publicados até o momento desta publicação. O primeiro compila as tiras de 1977 a 1979. O segundo contém as tiras de 1979 a 1981. O livro é baseado na edição norte-americana, publicada pela editora IDW.