domingo, 20 de fevereiro de 2022

Roy Thomas sobre o fim da tira do Homem-Aranha

O lendário Roy Thomas.

EM ALGUM PONTO nos primeiros meses dos anos 2000, eu mandei uma mensagem pro Stan Lee dizendo que adoraria fazer algum trabalho pra
Stan Lee Media — a companhia bem-divulgada, multi-equipe, online do Stan — se ele precisasse de mim. Ele me respondeu que, além de que ele gostaria de trabalhar comigo novamente, eu teria de estar em algum lugar de Los Angeles para trabalhar pra SLM, mas também disse que, por coincidência, ele realmente precisava de um escritor pra trabalhar com ele na tira de jornal O Espetacular Homem-Aranha, pra resumir e escrever o primeiro roteiro da tira de sete dias do [Sindicato] King Features. Eu disse que achava tranquilo (mesmo que eu nunca tivesse trabalhado escrevendo mesmo o Homem-Aranha como trabalhei escrevendo o Quarteto Fantástico, os Vingadores, o Conan, etc.). Ele respondeu com uma risada dizendo que talvez eu devesse esperar até ouvir a oferta que ele tinha, porque o dinheiro era pouco: só 300 dólares semanais. Eu ri e disse a ele que ele não tinha ideia do quão pouco me custava pra viver no meu terreno de 40 acres[1] no meio da Carolina do Sul. Então, um negócio foi rapidamente feito, e eu comecei a trabalhar, com minha primeira tira (uma de segunda, é claro) saindo no dia 17 de julho de 2000.

A tira de 17 de julho de 2000. A tira de 16 de julho, domingo, trazia
no último quadro que dizia o que aconteceria a seguir os dizeres:
"Um novo começo".

Conforme o andar da coisa, mesmo não recebendo um aumento em 18 anos e meio, eu basicamente escrevi a tira de forma anônima (porém, até os últimos anos, com as mãos de Stan editando), mas foi uma jornada ótima. Eu gastava talvez uns dois dias do mês escrevendo quatro semanas de tiras, e outros dois ou três dias no ano escrevendo quais seriam as próximas histórias.
Depois que o Stan parou suas atividades há alguns anos, após ter de instalar seu marcapasso, trabalhei primeiramente com seu assistente antigo Michael Kelly, com algumas indiretas verbais do próprio Stan, e, de certas formas, eu gostava ainda mais de trabalhar assim, já que Stan e eu estávamos apenas 80% na mesma página sobre o que fazia uma tira de jornal ser boa. Apesar da sua conhecida (e correta) visão do quão importante a escrita era para o sucesso da Marvel Comics de 1961 pra frente, ele falava constantemente sobre como era a arte que vendia bem uma tira de jornal. Eu não achava que isso refletia as realidades da situação, particularmente depois que o John Romita saiu da tira, alguns anos depois do começo dela, e como as tiras foram diminuindo e diminuindo cada vez mais nos jornais. O irmão de Stan, Larry Lieber, era um desenhista experiente (e Alex Saviuk era consideravelmente melhor), mas os artistas não tinham muito espaço, especialmente com as tiras diárias, pra fazer o tipo de arte que iria empolgar os leitores do jeito que, por exemplo, Milton Caniff conseguiu fazer em sua Terry and the Pirates [Terry e os Piratas]. Uma cena com o Aranha ou o Dr. Octopus numa tira pode atrair algumas pessoas, mas a escrita devia trazer os leitores de volta, dia após dia, já que o Aranha e o Peter e a MJ e o Dr. Octopus seriam basicamente sempre os mesmos, apertados em painéis pequenos — sem chance de termos uma página inteira como teríamos nos gibis. E, sim, eu escrevi um pouco mais de texto e diálogo do que ele fez, mas era algo parcial, porque eu não tinha a certeza de que as pessoas iriam acompanhar a tira diariamente, ou pelo menos, nenhum novo leitor iria começar a acompanhar a tira se ela fosse difícil de ser lida a partir de qualquer momento [de uma história].
Na maioria das vezes, entretanto, o Stan e eu nos demos muito bem. Na maior parte do tempo, ele gostava do que eu enviava, aceitando a maioria (mas não todas) das ideias que eu tinha para as histórias, e até alguns anos atrás frequentemente “sugeria” (ou insistia em) alterações nelas. Por alguns anos, ele chegou a reescrever um painel ou balão aqui e ali, ou até mais, enquanto que outras diárias ou dominicais passavam direto sem nenhuma mudança.
A maior mudança que eu tentei realizar, depois do primeiro filme do Homem-Aranha, foi tentar voltar num tempo quando a Mary Jane e o Peter não eram casados. Stan concordou e parecia até entusiasmado sobre a mudança no começo, e fizemos uma história inteira (envolvendo o Electro) com essa premissa. Mas quando o Stan mudou de ideia, eu percebi de cara que não seria capaz de reverter tudo. Então eu escrevi uma cena do tipo
Dallas[2] em que Peter acordava (depois de ir dormir no apartamento da tia May estando solteiro) e descobria que estava casado (de novo) com a Mary Jane, e foi assim que a gente manteve os dois desde então. E, na verdade, eu fiquei plenamente satisfeito com aquilo, pois foi uma alternativa às enrolações feitas nos gibis, em que o casal esqueceu completamente um ao outro e seu casamento, e sabe-se lá o que aconteceu entre ambos. Deixado inteiramente às minhas capacidades, e baseado na carreira de modelo da Mary Jane nos gibis, eu gradualmente a retirei do trabalho que ela tinha numa loja de computadores para fazer com que ela se tornasse uma estrela da Broadway e uma atriz de filmes, fazendo o papel de uma super-heroína chamada Marvella (antes mesmo da Capitã Marvel ser o que ela é hoje, ou talvez foi durante o período em que ela começou a ser), mas mantive ela junto ao Peter, de certa forma incongruente, em seu relativamente pequeno apartamento no Manhattan (exceto quando eles foram pra Los Angeles, claro), mas às vezes eles faziam compras caras.
Nos últimos anos, eu aumentei consideravelmente o número de participações especiais na tira: Wolverine, Homem de Ferro, Thor, Viúva Negra, Homem-Formiga, e, mais recentemente, o Punho de Ferro e o Luke Cage. A gente nunca se preocupou em tentar seguir a atual continuidade da Marvel, pois o Stan não queria mesmo fazer isso, exceto que, eu suponho, de tempos em tempos a gente dava umas pausas bruscas ou recomeços, como o exemplo dito do Peter e Mary Jane não estarem casados. Se existiam eventualmente múltiplos universos de Homens-Aranha nos quadrinhos (com diferentes Homens-Aranha, Mulher-Aranha, entre outros), bom, nosso universo na tira era somente mais um, porém o único, nos tempos mais recentes, em que Peter e Mary Jane ainda estavam juntos e casados, continuando a direção original tomada anos atrás nos gibis. A gente tinha muito orgulho disso.
Quando a tira morreu (ou melhor, foi morta), o Teatro Mammon em que a Mary Jane estava se apresentando foi fechado por conta de um dano crítico (claro, causado por uma luta do Homem-Aranha), e o “Marvella 2” acabou cancelado, então o casal decidiu viajar pra Austrália para tirar umas férias, e eu escrevi algumas semanas dessa continuação (com a aprovação total do Michael Kelly) envolvendo o vilão Kangaroo [Canguru]. Então, a Marvel decidiu encerrar a tira e não imprimir as últimas semanas, e eu me recusei a escrever as últimas tiras de modo a torná-las num “adeus”. Meu sentimento era que eu tinha aceitado o farelo da tira, então não tornei algo pessoal. Foi apenas um negócio — mesmo acontecendo que, quando eu soube que a tira ia acabar, eu não fiquei sabendo que, talvez porque aqueles que me disseram a notícia não sabiam dessa parte, a Marvel estava planejando ou reviver a tira com uma nova equipe criativa ou começar uma nova tira que não seria apenas do Homem-Aranha, mas algo mais parecido com o que a DC fez com a tira
The World’s Greatest Superheroes [Os Maiores Super-Heróis do Mundo], que tinha a participação de diversos dos heróis da DC (e, futuramente, passou a focar apenas no Superman). Eu senti que tinha escrito o que precisava ser escrito pra tira, e eles tinham a liberdade de fazer o que quiser com o roteiro (desde que eu fosse pago por aquilo que tinha feito originalmente), mas preferi não mexer mais. Quando eu termino alguma coisa, eu realmente termino essa alguma coisa.
Alex Saviuk, que seja abençoado, graciosamente redesenhou a última tira para mostrar nós dois juntos, e adicionou uma manchete com
“‘Nuff said!” no Clarim Diário. Talvez ele fosse mais prático para as coisas do que eu, e eu realmente o admiro por isso, já que ele gastou mais de duas décadas desenhando a tira dominical do Aranha e ainda tinha sido promovido a desenhar também as diárias perto do fim, só pra ver a tira ser cancelada pouquíssimo tempo depois, deixando-o sem um trabalho regular. Eu espero mesmo que ele encontre um. Ele merece.

A última tira do O Espetacular Homem-Aranha, datada de 23 de março
de 2019. Roteiro de Roy Thomas e arte de Alex Saviuk.

Naturalmente, eu senti muito pelo fim da tira (ainda mais porque isso significava o fim da única tira de aventura que ainda saía e que tinha sido lançada depois da metade do século passado), assim como também pelo fato de que nunca pude receber o crédito nas tiras pelo trabalho que nelas eu fiz — mesmo que eu, é claro, tenha feito aquelas tiras de Conan the Barbarian [Conan, o Bárbaro] no fim dos anos 1970. Mas, pelo menos, sei que certa vez Stan escreveu vagamente, talvez há uma década, em sua introdução ao livro Marvel Visionaries: Roy Thomas [Os Visionários da Marvel: Roy Thomas], que eu “o ajudava” com a tira do Aranha. Todo mundo com meio cérebro sabia com o que eu contribuía com a tira, de todo jeito. Aquilo não incomodou o Stan, nem me incomodou. A tira era criação do Stan, e eu estava feliz de escrevê-la, mesmo tendo de usar o nome dele, mas eu não gostaria de seguir fazendo essa escrita anônima depois que ele faleceu, se essa alternativa me tivesse sido feita.
Trabalhar com o Stan Lee e o Michael Kelly, assim como com Larry Lieber, Alex Saviuk e o incrível Joe Sinnott — que foi ocasionalmente auxiliado por Jim Amash ou Terry Austin — na tira do Homem-Aranha foi uma experiência muito boa, e eu sou grato ao Stan por ele ter me oferecido esse “negócio” lá em 2000. A tira se tornou a última de nossas muitas colaborações, entre as várias que fizemos, que começou quando, no começo de julho de 1965, eu escrevi uma história de Modelling with Millie [Modelando com Millie], com arte do Stan Goldberg, que teve toda a supervisão feita por ele [o único Stan Lee].

Roy Thomas escreveu está carta
para o Bleeding Cool em 2019.

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Notas:
[1] 161.874 metros quadrados.
[2] Exibida entre 1978 e 1991 nos Estados Unidos, a série de TV Dallas foi de grande sucesso, tendo um total de 357 episódios distribuídos em 14 temporadas. Roy faz referência à série pois a nona temporada se revelou, no fim, somente um sonho de uma das personagens.

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