domingo, 26 de julho de 2020

Bobby London e a polêmica em "Popeye"

POPEYE QUASE SEMPRE é lembrado como o marinheiro que salva Olívia Palito do grandioso brutalhão Brutus, após comer espinafre diretamente de uma lata e ter seus braços crescidos enquanto uma música toca ao fundo. Mas, a realidade é outra, e Popeye nem sempre foi fã de espinafre, pra ser honesto[1].
Popeye apareceu pela primeira vez em Thimble Theatre (em português, literalmente, Teatro de Dedais), no dia 17 de janeiro de 1929, quase dez anos após o lançamento da tira nos jornais — que ocorreu no dia 19 de dezembro de 1919 —, como um personagem de menor importância, mas isso logo mudaria. No final de sua primeira história, era para que ele não voltasse mais a dar as caras, afinal Thimble Theatre não tratava dele mas sim da própria Olívia Palito (Olive Oyl) e seu namorado Harold Hamgravy e o irmão de Olívia, Castor Palito (Castor Oyl). Mas o marinheiro conquistou os leitores de primeira, tanto que, após muito insistirem, fizeram com que o criador da tira, Elzie Crisler Segar, o trouxesse de volta.
Logo a tira mudaria de nome para Thimble Theatre starring Popeye, the Saylor (em português, Teatro dos Dedais estrelando Popeye, o Marinheiro) e então apenas Popeye. E, desde 1929, o protagonista continua a aparecer nos jornais pelo mundo afora... Porém, atualmente e de forma inédita, apenas aos domingos.

Capa do primeiro volume da coletânea de
tiras de
Popeye, por Bobby London.

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A TIRA DIÁRIA de Popeye teve diversos autores após seu criador original, Segar, morrer repentinamente em 1938. Doc Winner segurou as pontas ainda assinando em nome de Segar, e então os times de Tom Sims e Ralph Stein nos roteiros e Bela Zaboly na arte levaram a tira até 1959.
Neste ano, Bud Sagendorf entraria e traria a tira ao seu maior auge. Assistente de Segar, Sagendorf tinha o mesmo estilo de histórias que o primeiro criador, diferenciando apenas no ritmo em que elas eram contadas — enquanto Segar tinha histórias rápidas, Sagendorf levava às vezes uma inteira semana apenas para mover um pequeno pedaço da história. Sagendorf manteve os personagens clássicos, trouxe aqueles que haviam desaparecido e também introduziu novidades, todas estas tendo uma forte base Segariana. Sagendorf passou a tira diária adiante mas manteve-se na dominical até sua morte em 1994, quando Hy Eisman a assumiu, e continua a desenhando todos os domingos até hoje.
Então, em 1986, Bobby London assumiu ambos roteiro e arte da tira diária. London seria responsável por trazer updates à tira, colocando Popeye e seus amigos em situações atuais (para a época), mas mantendo o espírito de Segar presente. Em uma das suas melhores aventuras, The Return of Bluto (O Retorno de Brutus), colocou Popeye a encarar cada versão de seu rival barbudo, desde as clássicas das tiras, passando pelos gibis e animações. Infelizmente, a corrida de London na tira foi curtíssima, terminando em 1992.
O motivo é uma das maiores controvérsias do mundo dos quadrinhos: sua última aventura, Witch Hunt (Caça à Bruxa), trazia uma Olívia Palito viciada em compras pelo telefone (que era uma das novidades trazidas com a modernização das redes telefônicas). Entre seus diversos pedidos, uma surpresa: recebeu uma versão "'bebê-robô' de Brutus que é tão humano que ninguém diria que é um robô" que ela não se recordava de ter pedido. Ao testar o que o "bebê-robô" era capaz de fazer, ele praticamente se equiparava ao rival de Popeye, causando destruição para todo lado. Ao contar a Popeye que ela não tinha a intenção de manter o pedido para si e que gostaria de devolvê-lo, um passante escuta à janela Popeye dizer que "se você não quer carregar um bebê Brutus para lá e para cá, então deveria apenas se livrar dele". O passante corre e decide contar ao padre da cidade o que acabara de ouvir, dizendo, desmaiando, que Olívia pretendia cometer um "ato que começa com a letra A". A piada[2] se referia ao ato de aborto.

As três últimas semanas de Popeye publicadas nos jornais.

A história foi interrompida e não teve conclusão nos jornais. Bobby London foi demitido da tira.
"É crível que os arcos devem ser apropriados à natureza de uma tira qualquer. Os assuntos tratados nas tiras recentes de Popeye eram inapropriados para serem incluídos no que é uma tira de humor famíliar," declarou Jay Malcolm Kennedy, na época editor dos quadrinhos publicados pelo King Features Syndicate, sindicato que distribuía a tira de Popeye, entre outras. "Independente de qual era a ideia que o cartunista trataria sobre o assunto de aborto, o sindicato crê que ela não é um assunto apropriado para Popeye." Curiosa declaração dada pelo editor sobre uma tira em que assuntos, como, por exemplo, a agressão às mulheres, eram comuns desde seu primórdio.

Tira de 11 de novembro de 1936. O pai de Popeye agride
Olívia no último quadro.

Tira de 10 de fevereiro de 1937. O pai de Popeye agride
a Bruxa do Mar. "Você não é um cavalheiro!" diz a Bruxa
no último quadro, ao que o pai de Popeye responde "Eu
sei que não!"

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EM 1992, LONDON deu uma entrevista ao artista S.C. Ringgenberg sobre o ocorrido:

S.C. Ringgerberg: Estou falando com Bobby London. É dia 13 de julho de 1992. Bobby, me diga, por favor, em suas palavras, o que foi o problema em Popeye e com o King Features.
Bobby London: Bem, no dia 25 de outubro eu fiz uma piada em que a Bruxa do Mar dizia "Droga! Lá se vai Roe contra Wade[3]!" e não ouvi nenhuma reclamação do sindicato e isso foi já que eu sempre ouvia deles quando eles reclamavam de alguma piada ou qualquer coisa sem sentido que eu colocava na tira, que eram raras, mas às vezes acontecia. Eu automaticamente assumi que "Roe contra Wade" era algo tranquilo para eles e procedi para preparar uma história sobre o assunto.
Ringgerberg: E essa é a história que eles descobriram ser problemática com a Olívia querendo devolver o bebê que ela tinha recebido?
London: Ela não recebeu um bebê, mas sim um bebê-robô, que ela não lembrava de ter comprado pelo telefone. Era uma desculpa desenhada especificamente para manter a inocência da Olívia intacta, e também foi desenhada principalmente para satirizar todas as boas intenções que os personagens teriam.
Ringgerberg: Ah, então era especificamente, em sua mente, uma referência à questão do aborto?
London: Bem, claro, eu sabia disso, eu respeito a Olívia demais para subestimar sua reputação ou sua boa índole, ou qualquer outro detalhe nela. Eu nunca iria, diretamente, cutucar de forma maliciosa algo que ela se preocuparia. Eu a conheço por anos e ela é uma boa mulher, justa e correta.
[...] Ringgerberg: Há quanto tempo você estava desenhando a tira?
London: Desde 1986.
Ringgerberg: Certo, então, conte com detalhes exatamente como foi que o sindicato lhe notificou que seu trabalho era inaceitável e que você estava sendo demitido?
London: Bem, eles... Posso lhe dizer de forma breve e abrupta que tudo aconteceu de forma breve e abrupta. Eles apenas... O editor, Jay Kennedy, me ligou e disse que eles estavam insatisfeitos com a história e que eu estava sendo demitido. Foi simples assim.
[...] Ringgerberg: E você ainda tem tiras devendo a eles?
London: Estou devendo três semanas, que estou a desenhar enquanto a gente conversa agora! (Risos.)
Ringgerberg: E sobre essas tiras em questão, além da história em si, o sindicato lhe disse que eram inaceitáveis. Eles receberam alguma reclamação de algum jornal?
London: Não que eu saiba. Nunca recebi nada além de cartas positivas.
Ringgerberg: Então foram apenas os executivos do King Features decidindo que não gostaram e só?
London: Sim. Eu ouvi rumores de alguém que eles estavam considerando me retirar fazia um tempo por terem outros planos para o Popeye, mas eu só ignorei. Continuei ignorando rumores como aquele porque são apenas rumores, e eu queria me concentrar no meu trabalho, melhorá-lo. [...]
[...] Ringgerberg: Bem, além dessa coisa toda com a história da Olívia, a tira do Popeye estava dando certo? Seu trabalho tinha atraído mais jornais?
London: Sim, tinha, e, pra te falar a verdade, estava começando a atrair mais clientes quando essa história da retirada aconteceu. [...]
[...] Ringgerberg: E quando você descobriu que foi demitido?
London: Sexta, 17.
Ringgerberg: Então foi há duas semanas.
London: Sim, como disse, foi tudo muito rápido.
Ringgerberg: E qual sua opinião sobre o King Features agora?
London: Sem comentários. (Risos.)
Ringgerberg: Certo.
London: Tudo que posso dizer é que não vou comer espinafre por um bom tempo.

A história controversa de London seria finalmente impressa anos depois, no segundo compilado com tiras que foi lançado pela IDW em 2014. Desde 1992, a tira diária tem reimpressões de histórias da época de Bud Sagendorf, prática que continua até os dias de hoje.

Capa do segundo volume da coletânea de
tiras de 
Popeye, por Bobby London. Ele contém
toda a aventura
Caça à Bruxa, inédita até então.

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Notas:

[1] O espinafre no universo de Popeye só ficou marcado como "a comida favorita do marinheiro" por conta das animações produzidas pelos Estúdios Fleischer a partir de 1933, que introduziram o alimento como um "aumentador de força". Nos quadrinhos, a aparição da verdura era raríssima. Popeye não ganhava mais força ao comer espinafre nos quadrinhos. Na verdade, ele dizia que sua força natural era mantida por conta do espinafre.

[2] Por mais que houvessem arcos com começo, meio e fim, as tiras de Popeye sempre continham uma piada no último quadro, diferenciando-as das outras tiras de aventura que colocavam geralmente cenas de suspense (cliffhangers).

[3] Ocorrido em 1973, o caso judicial Roe contra Wade foi o caso pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos da América reconheceu o direito ao aborto ou à interrupção voluntária da gravidez.

Lucas Cristovam, 26 de julho de 2020,
Parnamirim, Rio Grande do Norte, Brasil.

domingo, 19 de julho de 2020

Alex Raymond: biografia resumida

UMA DAS MINHAS principais inspirações, Alex Raymond criou meu personagem favorito, o detetive particular Rip Kirby (conhecido no Brasil como Nick Holmes, cujo primeiro nome foi o mesmo que decidi usar no protagonista da minha tira, Nick Felix, como homenagem a Raymond). Deixo aqui a introdução que a edição de Nick Holmes (Rip Kirby) lançada em 1984 pela L&PM Editores traz. O texto é curto, mas rico em detalhes.


ALEXANDER GILLESPIE RAYMOND, ou apenas Alex Raymond, nasceu em New Rochelle, Nova Iorque, no dia 2 de outubro de 1909. Filho de um engenheiro civil, aos 12 anos interrompeu seus estudos de arte por causa da morte do pai, indo trabalhar (tinha seis irmãos mais jovens para cuidar). Em 1929, com a quebra da bolsa, perdeu o emprego na Wall Street. Ingressou então na Grand Central School of Art. Estreou nos quadrinhos aconselhado pelo desenhista Russ Westover, de quem torna-se assistente na série Tillie, the Toiler (Ditinha, no Brasil). A seguir, trabalha como assistente de Chic Young na tira Blondie (Belinda, no Brasil) e Liman Young em Tim Tyler's Luck (Tim e Tom, no Brasil) até 1933.
Neste mesmo ano, vence um concurso para desenhar a série Secret Agent X-9 (Agente Secreto X-9, no Brasil), escrita por Dashiell Hammet. 1934 é o ano em que Raymond "explode": além do X-9, primeira série que ele assina, lança ainda outras duas criações, totalmente suas: Flash Gordon e Jungle Jim (Jim das Selvas, no Brasil). Durante um ano e meio trabalha nas três séries concomitantemente, então abandona o X-9 e passa a dedicar-se inteiramente às suas criações. Nesse meio tempo, o sucesso — principalmente de Flash Gordon — era tanto que, já em 1935, a série ganha um programa semanal no rádio e, em 1936, a Universal Pictures produz a série mais cara da época: Flash Gordon no cinema. Enquanto isso, Raymond também ilustra revistas como a Collièrs Weekly, Blue Book, Esquire e Look, além de desenhar capas de revistas, livros, cartazes de cinema e propagandas. Um dia, porém, declara: "Estou sinceramente convencido de que a arte dos quadrinhos é uma forma de arte autônoma. Reflete sua época e a vida em geral com o maior realismo e, graças à sua natureza essencialmente criativa, é artisticamente mais válida do que uma mera ilustração. O ilustrador trabalha com máquina fotográfica e modelos. O artista dos quadrinhos, entretanto, começa com uma folha de papel em branco e inventa sozinho uma história inteira — é escritor, diretor, editor e desenhista, tudo ao mesmo tempo."
Em 1944, é convocado pela Marinha, por conta da Segunda Guerra Mundial. Deixa de desenhar ambos Flash Gordon e Jungle Jim e embarca rumo ao Pacífico Sul, como capitão, a bordo do porta-aviões USS Gilbert Islands. Ali, testemunhou as batalhas de Bornéu[1] e Okinawa[2]. Depois da Guerra, o agora major Alex Raymond retorna à vida civil cheio de ideias para uma nova HQ. Enfim, em 1946, nasce Rip Kirby (Nick Holmes, no Brasil), um ex-oficial da Marinha que se torna detetive particular. Mas é um detetive diferente: sofisticado, intelectual, um verdadeiro criminologista. Adepto da ciência, só recorre à força bruta em último caso, coisa raríssima na tradição do gênero. Em Rip Kirby, Raymond pinta o painel da euforia americana do pós-Guerra, basicamente no cenário da alta burguesia nova-iorquina, nostálgica da tradição aristocrática europeia. No entanto, por trás das idílicas charretes do Central Park, das mulheres refinadas e dos arranha-céus, transparece a sabedoria humana do escritor na construção psicológica dos personagens: mesmo o bandido mais empedernido tem o seu lado humano, mesmo o grã-fino mais invejável tem a sua fraqueza. Raymond sabe — e, às vezes, até mostra — que o crime é, muitas vezes, uma tentativa individual de superação em sistemas social e economicamente excludentes. Nas suas histórias, vários dos aristocratas acabam em cana e vários dos bandidos se regeneram, embora, caracteristicamente, a condição para a regeneração, no caso, seja aceitar, tal como é, o American Way of Life[3]. O belo desenho refinado e a grande capacidade narrativa de Raymond fizeram de Rip Kirby um grande sucesso popular.
A brilhante carreira de Raymond infelizmente termina de forma trágica na Clappboard Hill Road, perto de Westport, Connecticut, em um acidente automobilístico em 6 de setembro de 1956. Mas a imensa carga de conhecimento por trás de cada quadrinho, a constante busca por novas ideias e experimentos técnicos, o desenho preciso e vivo e a maestria e simplicidade na criação gráfica da figura são, desde sempre, inspiração para desenhistas do mundo inteiro.
Sem Raymond, a Era de Ouro dos Quadrinhos[4] não seria, certamente, tão dourada. A história que inicia esta publicação, O Caso Faraday (The Chip Faraday Murder, no original), foi a primeira aparição de Rip na imprensa americana, onde foi publicado em tiras diárias desde 4 de março de 1946. Após a morte de Raymond, a tira passou a ser desenhada por John Prentice, que a faz até hoje[5].

A semana de estreia de Rip Kirby.

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Notas:

[1] Campanha bem sucedida liderada pelas forças imperiais japonesas para o controle da ilha de Bornéu durante a Segunda Guerra Mundial, ocorrida entre dezembro de 1941 e abril de 1942. Há um possível erro no texto original, visto que Raymond juntou-se à Guerra dois anos após o fim desta batalha.

[2] Maior ataque anfíbio — operação militar lançada a partir do mar por uma força naval em navios, envolvendo o desembarque em uma praia — da Segunda Guerra Mundial, ocorreu durante a campanha do Pacífico entre abril e junho de 1945. Foi a maior das batalhas ocorridas, com estimativa de baixas entre 42 a 150 mil civis mortos.

[3] Em português, Estilo Americano de Vida. Expressão aplicada a um estilo de vida que funcionaria como referência de autoimagem para a maioria dos habitantes norte-americanos, cuja base é a crença nos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade como direitos inalienáveis para todos os americanos.

[4] Período compreendido entre os anos de 1938 e 1956 por historiadores, onde os quadrinhos se tornaram extremamente populares, levando à criação dos gibis e do gênero de super-heróis. Teve seu início marcado pelo lançamento de Superman e seu fim foi marcado pela criação do Código Regulador de Quadrinhos (Comic Code Authority) pela Associação de Revistas em Quadrinho Americana (Comics Magazine Association of America), código este que passou a censurar conteúdos em quadrinhos norte-americanos.

[5] John Prentice trabalhou na tira até sua morte em 23 de maio de 1999. A tira chegou ao fim em 26 de junho do mesmo ano.

domingo, 12 de julho de 2020

"Rádio Patrulha": a melhor tira dos anos 30

O TEXTO A SEGUIR é uma tradução adaptada que você pode encontrar no site de Michael E. Grost (http://mikegrost.com/). Decidi traduzi-lo pois faz uma distinção muito boa que me permite afirmar: Rádio Patrulha é a melhor tira dos anos 30, com toda certeza.

Rádio Patrulha, por Michael E. Grost

A tira de aventura policial Rádio Patrulha (Radio Patrol) foi lançada diariamente entre 1933 e 1950, com as tiras dominicais saindo entre 1934 e 1946. Foi escrita por Eddie Sullivan, e desenhada por Charlie Schmidt. Seguia as aventuras do Sargento Pat (protagonista da tira), da policial Molly Day (Mariazinha), do parceiro de Pat, Sam (Samuel), e do jovem corajoso Pinky Pinkerton (Paulinho) e seu cachorro Irish (Rex). Pat parecia ser um policial irlandês, o que era uma tradição na época. Molly é inteligente, corajosa e competente, e é definitivamente uma das personagens menos sexualizadas nos quadrinhos. Ambos Sullivan e Schmidt trabalhavam para o mesmo jornal em Boston, e a série se passava no local e na sua vizinhança.

O elenco de protagonistas de Rádio Patrulha.

Rádio Patrulha era organizada em diferentes histórias sem continuação. Cada nova história tinha seu título revelado no último painel da última tira da história anterior. Como era comum na época, as tiras diárias tinham histórias diferentes das dominicais.
A tira gerou um seriado para o rádio e também um filme em série. Este foi lançado em 1937 e trazia Grant Withers [1] como o herói protagonista no papel principal.

Capa do filme em série Rádio Patrulha, de 1937.

Rádio Patrulha tinha alguns dos aspectos comuns em tiras dos anos 30: histórias longas, tonalidade mais séria, um herói protagonista bonitão, cenas de ação ocasionais, arte incrivelmente desenhada. Mas Rádio Patrulha é bem diferente no sentido de 'sentir a história' quando comparada às tiras de ficção científica famosas da época, como Flash Gordon [2], Brick Bradford [3] e outras: tudo em Rádio Patrulha é realista. Não há elementos de ficção científica ou fantasia. Os locais das histórias eram reais. As personagens estavam sempre usando roupas realistas — Pat, por exemplo, estava sempre em seu uniforme policial, ou em ternos ou roupas sociais, quando estava disfarçado. Isso diferencia a Rádio Patrulha de Flash Gordon e Brick Bradford, porque Flash e Brick estavam sempre mudando suas vestimentas de acordo com os locais que passavam. Pat não era o único protagonista, como Flash e Brick eram em suas próprias. Na verdade, o ponto de vista nas histórias era distribuído entre uma grande variedade de personagens, incluindo os vilões que iam surgindo. Enquanto que as personagens de tiras de ficção científica resolviam muitas aventuras com confusões e lutas, Rádio Patrulha tinha suas personagens realmente voltadas para a linha do detetivesco.

Rádio Patrulha de 9 de janeiro de 1937. Note as vestimentas
das personagens.

Os roteiros de Rádio Patrulha também são muito mais bem construídos do que a maioria das tiras de ficção científica da época. Todo acontecimento em Rádio Patrulha roda direta e logicamente ao redor das ações de uma das personagens. Esta pode ser o herói protagonista, um dos inúmeros vilões da série, ou até um suspeito em um crime. As interações das personagens e os acontecimentos gerados são o que constrói a história e leva à ação da tira. Em contraponto, outras tiras têm seus heróis a explorar um planeta novo ou uma antiga civilização, e esse fantástico lugar tem o propósito de desenrolar a história. O que as personagens e seus individuais são ou fazem tem muito menos a ver com o roteiro.

Rádio Patrulha de 18 de julho de 1936.

Também há um senso crítico de humor na tira. Não temos piadas feitas de propósito, para o leitor dar risadas. Na verdade, o senso de absurdo e a ironia pairam sobre as personagens. Os roteiros geralmente mostram isso de forma explícita. Uma afirmação ou atitude de uma personagem vai ser referida pelos outros como algo 'digno de uma comédia'.

Topper[4] Inimigos Públicos Através dos Anos e
tira de Rádio Patrulha de 6 de julho de 1935.

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Rádio Patrulha no Brasil

PELAS NOSSAS TERRAS brasileiras, Rádio Patrulha deu as caras em diversos dos antigos suplementos de jornais, como O Globo Juvenil e Suplemento Juvenil, além de coletâneas como o Almanaque do Globo Juvenil e o Almanaque do Gibi Nostalgia. Porém, a tira nunca foi algo tão grandioso como Mandrake, o Mágico ou O Fantasma foram.
Por conta disso, muitos lembram ou sequer ouviram falar da tira. Eu só vim conhecê-la através do site Comics Kingdom (https://www.comicskingdom.com/radio-patrol), onde as diárias saem de segunda a sábado. Como ela ganhou um posto muito importante como uma das minhas três tiras diárias favoritas (dividindo o espaço com Rip Kirby [5] e Brick Bradford), hoje, além da matéria acima, trago também uma história completa que tenho no meu arquivo de scans. Trata-se de Os Incendiários, que saiu por aqui no Almanaque do Gibi Nostalgia e lá nos E.U.A. entre 10 de maio e 7 de agosto de 1937.
Façam uma boa leitura (se a imagem estiver pequena, cliquem com o botão direito e então cliquem em "Abrir imagem em uma nova guia" para ampliá-la) e me digam se não concordam que a tira é realmente muito boa?














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Notas:

[1] Nascido em 1905, Granville Grant Withers foi um famoso ator norte-americano. Estreou em filmes mudos, mas logo migrou para os com som. Entre seus papéis de destaque, foi o protagonista do filme em série de 1937 Jungle Jim (Jim das Selvas). Faleceu em 1959, com 54 anos.

[2] Considerada uma das mais famosas histórias em quadrinhos de ficção científica de todos os tempos, Flash Gordon foi criado em 1934 por Alex Raymond. A tira foi tão importante que até hoje inspira diversas gerações. Talvez a mais importante inspiração tenha sido a de George Lucas, que tentou fazer um filme da tira em 1970, mas, tendo seus direitos negados, criou então o universo de Star Wars. Teve uma série recente no canal Syfy, no ano de 2007.

[3] Com roteiros e desenhos criados respectivamente por William Ritt e Clarence Gray, em 1933, Brick Bradford foi uma das mais importantes histórias em quadrinhos de ficção científica. Seguiu sendo publicada até 1987, quando teve seu encerramento pelas mãos de Paul Norris (o mesmo criador de Aquaman).

[4] Do inglês, "mais acima", "no topo". As toppers eram tiras secundárias que vinham logo acima da principal tira de uma página dada a um cartunista nos jornais antigos. Foram muito famosas durante os anos 20 e 30.

[5] Lançada em 1946 pelo mesmo criador de Flash Gordon, Alex Raymond, Rip Kirby (conhecido no Brasil como Nick Holmes, em associação ao famoso detetive inglês) é talvez a mais realista tira de detetive do século passado, e uma das mais importantes, dividindo o posto com Dick Tracy. Raymond já havia criado três tiras famosas anteriormente — Flash Gordon, Jim das Selvas e Agente Secreto X-9 — e, após a Segunda Guerra Mundial, não voltou a trabalhar nelas, mas decidiu criar uma totalmente nova. Trabalhou em Rip Kirby até sua morte, em 1956, quando John Prentice assumiu a arte e a levou até o fim, em 1999.

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Referências:

• GROST, Michael E. Radio Patrol. Disponível em http://mikegrost.com/patrol.

• RIBEIRO, Antônio L. Eddie Sullivan. Disponível em http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/eddie-sullivan/4018.

• RIBEIRO, Antônio L. Charles "Charlie" Schmidt. Disponível em http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/charles-charlie-schmidt/4019.

Lucas Cristovam, 12 de julho de 2020,
Parnamirim, Rio Grande do Norte, Brasil.

domingo, 5 de julho de 2020

O Legado de Locher

Dick Tracy por Dick Locher

ENTRE OS MEUS cartunistas favoritos, destaco Dick Locher. Locher foi importante para me introduzir — e me fazer gostar — de Dick Tracy. E não é só uma coincidência que ambos, personagem e criador, tenham o mesmo nome: parece que eles foram feitos um para o outro.
Enquanto Chester Gould tinha um traço completamente cartunesco para a tira de Dick Tracy — lançada por Gould em 4 de outubro de 1931 e até hoje sendo publicada de forma contínua —, quando Richard Fletcher assumiu o título em 26 de dezembro de 1977, trouxe junto de si o estilo "sisudo" — o queixo de Tracy seria marcado e quadrado, e a tira teria traços grossos e firmes, com um uso intenso do preto — que seria carregado por Fletcher e passado adiante para Locher. E como ele sabia utilizar bem o preto!

Tiras de Dick Tracy por Mike Killian e Dick Locher

R.C. Harvey escreveu um artigo incrível para o The Comics Journal em 21 de agosto de 2017 — ano da morte de Dick Locher — e trago abaixo um trecho traduzido contando como foi que Locher chegou à tira:

Dick Locher à prancheta

"Locher começou a desenhar Dick Tracy após a morte de Rick Fletcher no começo de 1983. Fletcher e Max Allan Collins estavam na tira desde que seu criador, Chester Gould, se aposentou em 1977. Fletcher havia sido o assistente de Gould.
'Fletcher morreu na sua prancheta,' Locher se lembraria. 'Era 1983. E o sindicato me disse, 'Não podemos deixar a maré subir e as coisas transbordarem aqui,' e me perguntaram se eu tinha interesse em continuar. 'Eu já tenho um trabalho,' eu disse, 'Não, não, não quero deixar os cartuns editoriais de lado.' Na semana anterior, eu tinha acabado de ganhar um Pulitzer[1]. Eu realmente não queria desistir. Então eles disseram, 'Bem, você já foi convocado de qualquer jeito; vamos te arranjar um assistente.' E lá fui eu.'
E lá foi ele.
Locher assumiu a arte enquanto Collins continuou escrevendo até 1993, quando o sindicato decidiu trocar Collins e contratou Mike Kilian para a escrita. Kilian era jornalista durante o dia, e, durante a noite, escrevia uma série de romances policiais que aconteciam durante a Guerra Civil Americana [2].
A ligação de Locher com Dick Tracy, porém, começou muito antes, em 1957, quando ele foi assistente de Gould por quatro anos e meio. [...] 'Eu estava ensinando arte na Academia de Belas Artes de Chicago, [...] e Coleman Anderson, assistente de Gould na época, também dava aulas lá. Um dia saímos para jantar e ele me disse, 'Chester está à procura de outro assistente. Você tem interesse?' Eu respondi que sim, e que queria falar com ele. Então eu me encontrei com Gould na sua casa. Ele me deu uma semana de tiras e disse, 'Vá pra casa e desenhe as minhas figuras, e eu farei o roteiro.' E assim ele fez. E eu também. E ele me avaliou, gostou do que viu e me contratou.'
[...] Os cliffhangers [3] e as armadilhas são realidade na tira e, com o passar dos anos, Dick Tracy se tornou um amigo. 'Pelos longos e maravilhosos 28 anos que trabalhei na tira,' Locher me disse, 'Eu tive o prazer de estar sentado como passageiro no carro de Tracy,' completou, com uma metáfora feita de coração. 'Tudo que espero é que, durante este tempo, eu tenha entretido meus leitores e tenha alcançado a pontinha de todo o brilho que Chester Gould tinha. Foi uma carona incrível, essa que recebi. Como pessoa, eu entendia Tracy, e tenho a certeza de que ele me entendeu também. Agora, quando chegar naquela próxima esquina, é ali que eu fico. Tracy! É aqui que eu desço. Obrigado!''
E que você possa descansar em paz dessa jornada, Dick."

Após Locher se aposentar, em 2011, Joe Staton e Mike Curtis assumiram a tira, e continuam a produzindo com maestria até hoje. Locher viria a falecer em 6 de agosto de 2017.

Última tira de Dick Tracy desenhada por Dick Locher,
publicada no dia 13 de março de 2011

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Notas:

[1] Prêmio estadunidense outorgado a pessoas que realizem trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição musical.

[2] Guerra civil ocorrida entre 1861 e 1865, entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. Um dos principais motivos para seu estopim foi a longa controvérsia sobre a escravização dos negros. Com o seu término, em 23 de junho de 1865, a escravidão foi abolida em todo o território norte-americano. É um dos principais eventos estudados e escritos sobre a história dos Estados Unidos.

[3] Do Inglês, literalmente, "à beira do abismo". Recurso de roteiro utilizado nas histórias de ficção cuja principal característica é a ideia de levar uma personagem ao limite, tal como um dilema ou um confronto, e então utilizar disto para levar a uma revelação, geralmente surpreendente. A ideia dos cliffhangers é manter a atenção do público, dando o gosto de "quero mais".