domingo, 13 de fevereiro de 2022

Um dia por vez: a tira de jornal do Espetacular Homem-Aranha

Matéria originalmente publicada na revista da editora TwoMorrows Back Issue #44, de setembro de 2010.

Por Dewey Cassell
Tradução por Lucas Cristovam

Painel de abertura da tira dominical do Homem-Aranha,
com arte de John Romita.

A PARTE MAIS DIFÍCIL era sempre a espera. Ao fim de cada edição do gibi O Espetacular Homem-Aranha, o teioso estaria prestes a ser derrotado pelas mãos do mais novo vilão, e eu teria de esperar até o próximo mês para descobrir como a história se desenrolaria. Era uma tortura sem medida, pelo menos para um garoto de 12 anos. Se ao menos eu pudesse ter uma dose diária do Aranha...
Com o sucesso contínuo do Homem-Aranha nos gibis, desenhos animados e outras mídias, não era surpresa que a Marvel tentaria se juntar à página de quadrinhos dos jornais como outra forma de espalhar a palavra do lançador de teias. De fato, o editor e roteirista Stan Lee e o artista John Romita Sr. da Marvel prepararam uma proposta para uma tira do Homem-Aranha por volta de 1970, com duas semanas de tiras tendo um vilão chamado Phantom Burglar [algo como “Ladrão Fantasma”], mas ela nunca decolou. Não foi até 1977 que o mascote da Marvel teve estreia nos jornais, uma cortesia do Sindicato Register e Tribune (que foi comprado posteriormente pelo Sindicato King Features).

A primeira semana de tiras do Homem-Aranha,
de 3 a 9 de janeiro de 1977.

Converter um gibi numa tira era mais difícil do que se pode pensar. O desafio tinha certa escala, como Stan Lee explicou na edição #1208 da Comics Buyer’s Guide [Guia do Comprador de Gibis]: “O maior problema era como fazer uma cena de luta numa tira de jornal. Se o Homem-Aranha desse um soco na cara de um personagem, você teria de esperar até o dia seguinte só para ver esse personagem cair no chão!”

STAN “THE MAN” E “JAZZY” JOHNNY

Para encarar tal desafio, Lee se juntou ao vivaz artista do Aranha, e também diretor de arte da Marvel, John Romita. Juntos, eles conseguiram “reduzir” Peter Parker às tiras, focando tanto em Parker como em seu alter ego. (Lee chegou até a dizer que a tira era uma “novela de super-herói”.) De certa forma, não é difícil assumir que a fórmula deu certo, dado que era o lado humano falho do Homem-Aranha que deixava o personagem tão carismático nos gibis.
Com o passar dos anos, a tira teve a participação de diversos heróis dos gibis da Marvel — incluindo o Doutor Estranho, o Demolidor e Namor —, assim como os vilões clássicos do teioso — como o Doutor Destino, Kraven o Caçador, o Rei do Crime, Mystério e o Doutor Octopus —, mas as temáticas da tira eram inteiramente únicas. Alguns personagens de apoio, como Flash Thompson e Harry Osborn, apareceram nos primeiros anos da tira, mas desapareceram com o passar do tempo. Parte da ideia de não manter uma continuidade com o universo dos gibis é tida porque os leitores de jornal podem não ter tanta familiaridade com o que acontece nas revistas. Só tiveram três ocasiões em que a tira foi direta e paralelamente ligada aos gibis. A primeira vez foi com o casamento de Peter Parker e Mary Jane Watson, em junho de 1987. A versão em gibi foi publicada como O Espetacular Homem-Aranha Anual #21, e até uma celebração ao vivo foi feita no Shea Stadium, com o próprio Stan Lee sediando o evento. A segunda ocasião foi com o arco “Homem-Aranha: A Agenda Mutante”, que saiu entre dezembro de 1993 e março de 1994, tendo o Fera dos X-Men e o vilão Duende Macabro como participantes, no primeiro crossover entre dois formatos. A terceira e mais recente ocasião foi o arco “Brand New Day” [“Um Novo Dia”, no Brasil] de 2008, que reiniciou os personagens à época em que ambos não estavam casados. Entretanto, as reações dos leitores quanto às mudanças na tira de jornal foram tão negativas que Stan Lee decidiu que tudo aquilo era apenas um sonho ruim e restaurou a tira ao que ela era originalmente.

Página dominical de 21 de junho de 1987, com o casamento
de Peter Parker e Mary Jane Watson. Roteiro de Stan Lee
e arte de Flor Dery.

Algumas tiras do arco A Agenda Mutante, que foi um crossover entre a
tira e o gibi em 1994. 
Roteiro de Stan Lee e arte de Larry Lieber.

As três primeiras tiras do arco que reiniciou a vida de Peter Parker
nas tiras de jornal, lançadas entre 31 de dezembro de 2008 e 2 de
janeiro de 2009. Roteiro de Roy Thomas e arte de Larry Lieber.

Lee escreveu O Espetacular Homem-Aranha desde o começo. Os arcos variavam em tamanho, durando, em média, de oito a doze semanas, mas algumas histórias chegaram a sete meses enquanto que outras tiveram apenas dez dias. Tais arcos não possuíam título — mas, por um breve período, novas histórias começavam com um logo no primeiro quadro da primeira tira. Hoje, a narração ao fim do último quadro da tira dominical é o responsável por geralmente anunciar qual será a próxima história. Quando perguntado sobre como ele mantinha a tira atual e interessante depois de todos os anos, Stan respondeu, “É difícil, mas, ei, esse é meu trabalho. É por isso que eu escrevo quadrinhos ao invés de trabalhar num laboratório ou ser um astronauta”.
Romita ficou na tira pelos quatro primeiros anos, desenhando tanto as diárias quanto as dominicais, com ocasionais assistências de Fred Kida e John Verporteen. Romita desenhou diversos novos personagens que eram exclusivos da tira de jornal, incluindo vilões como o Rattler [Crotalus] e o Protector [Protetor], assim como um interesse amoroso para Peter Parker chamada Carole Jennings. Durante aquela época, Romita também manteve seu papel de diretor de arte na Marvel, suspeitando de que a tira não iria longe. Sobre se arrepender ou não de ter deixado a tira, Romita comentou em seu A arte de John Romita: “Tenho emoções mistas sobre ela. Era um trabalho complicado, mas eu amava a ideia de alcançar pessoas no mundo todo através de seus jornais diários”.

LARRY LIEBER E FRED KIDA

Romita foi sucedido durante um pequeno tempo por Larry Lieber, e então, subsequentemente, por Fred Kida, que desenhou as tiras diárias de agosto de 1981 a julho de 1986. Quando perguntado sobre como ele se envolveu com a tira diária de forma regular, Kida recorda: “Foi o John Romita que me pediu pra fazer”. E ele não achava que a tira era algo tão complexo assim. “Eu sempre gostei de desenhá-la. Não tinha nada de complicado [sobre a tira]”. Porém, ele chegou a um ponto em que não queria mais desenhá-la. Quando questionado sobre o motivo de abandoná-la, ele somente disse: “[A tira] tinha muita violência”.

A bela arte de Fred Kida em duas tiras datadas de 9 e 18 de junho de 1983.

Depois de Kida sair da arte, Dan Barry teve uma curta passagem na arte diária antes de Larry Lieber retornar em janeiro de 1987, onde se encontra até os dias de hoje. Floro Dery ficou por dez anos fazendo o lápis das páginas dominicais, seguido por uma série de artistas, incluindo Ron Frenz, Sal Buscema, Paul Ryan e Alex Saviuk, que desenhou a tira dominical começando em 1997 e segue nela até os dias de hoje, realizando a arte-final também. Outros arte-finalistas incluem Mike Esposito, Frank Giacoia, Joe Giella, Tom Morgan, Dave Simons e Joe Sinnott, que auxilia Saviuk hoje. Um grande número de artistas participou de forma anônima na tira com o passar dos anos, incluindo George Tuska.
De todos os artistas que desenharam a tira O Espetacular Homem-Aranha, nenhum deles é mais associado a ela do que Larry Lieber. Lieber já estava desenhando a tira O Incrível Hulk desde sua criação em 1978, mas não foi exatamente um começo suave com o Aranha. Lieber relembra: “Eu já havia tentado previamente, quando o Romita saiu, mas não fui capaz de manter o cronograma. Assim que você termina uma semana, já tem que começar com as artes da próxima. Eu não era rápido o suficiente. Então eu fiz algumas páginas dominicais aqui e ali por um tempo até que Fred Kida assumiu o cargo. Então, por algum motivo, ele quis sair, depois de um tempo. O Stan encontrou alguém pra seguir na tira, mas não deu certo. Então ele me perguntou se eu queria fazê-la. Tentei dessa vez e aí consegui manter o cronograma. Tanto que já estou fazendo a tira por 23 anos.”
O segredo pra manter tal cronograma finalmente provou ser um problema de entender seus limites, como Lieber comenta: “Comecei só fazendo o lápis da tira, enquanto outra pessoa finalizava, e, depois de um tempo, eu senti que queria finalizar sozinho. Não tinha feito a arte-final de forma profissional na indústria até então. Só os lápis. Mas senti que queria finalizar minha própria tira. E eu gostei do jeito que fiz porque refletiu pra onde eu estava querendo ir ao fazer o lápis, e era só continuar com a tinta. Mas era trabalhoso demais. Fiz esse trabalho por anos e, nos últimos anos, me encontrava sentado virando a noite na prancheta. Acabou se tornando algo pesado pra mim. Então finalmente deixei essa parte e outras pessoas estão no comando desde então.”

Três tiras diferentes com arte de Larry Lieber. Datas: 14 de março e 16 de julho
de 2007 e 31 de março de 2008.

Diferente do “método Marvel”, usado nos gibis, em que o artista recebia apenas uma sinopse da história, a tira de jornal é produzida com roteiro completo. Felizmente, Lee e Lieber, que são irmãos, se falam bem e com constância. Lieber comenta: “Recebo roteiros completos. Posso até fazer certas mudanças, se eu quiser, e tudo o mais, mas o roteiro é fechadinho, o que é ótimo. [Stan] me manda os roteiros e eu desenho, por isso ligo pra ele todas as semanas. Reduzo os lápis e mando para ele. Tento até enviar a tira já finalizada, mas às vezes não é possível, então ele vê apenas esboços, mas isso é o suficiente pra ele ver se eu desenhei a cena corretamente. Então ele comenta um pouco, e geralmente muda coisas nas falas, às vezes em alguns desenhos. Quando ele pedia certas mudanças, eu concordava. Eu posso ter sentido que talvez não era tão importante, mas pelo menos eu concordava. É um bom relacionamento que já dura anos.”
Mas é claro, a tira também apresenta algumas dificuldades. Sobre qual a coisa mais difícil em desenhar a tira, Lieber responde: “Pra mim, acho que é a mudança de aspecto da tira, que é meio romântica às vezes, quando Peter está com a Mary Jane, e eu preciso achar o clima pra torna-los atraentes e tento buscar as melhores expressões e poses, e também pensar de forma romântica, como um artista de romances. E então eu tenho de mudar para um artista de quadrinhos de super-herói. Você vai de um para outro — o que é o motivo que torna o Homem-Aranha um personagem desafiante, pois ele tem ambos os casos.”
Mas algumas dificuldades são resultadas da economia. Lieber adiciona: “Também tem o fato de a tira agora tem que ser bem, bem pequena para os jornais. É um desafio gigante tentar colocar algo como o Homem-Aranha em um espaço tão pequeno, por causa da natureza das histórias. Ele se balança em suas teias pelo meio da cidade e também sai subindo e descendo, escalando os prédios. E você ainda precisa deixar espaço pras letras e balões, tem os diálogos e narrativas, então não dá pra fazer algo pequeno demais ou seria ilegível. Então fazer isso tudo de um modo que dê pra compreender é bem difícil. Existem vários outros veículos e mídias para o Homem-Aranha que são visualmente empolgantes, e eu tenho minha pequena tira e preciso fazê-la interessante o suficiente para que os leitores queiram lê-la.”
“Não tenho um tempo tão grande, mas tento fazer alguns prédios realistas,” Lieber continua. “Eu não tento desenhar alguma rua em específico, mas tento fazer um prédio real que existiria em Nova Iorque. Tento dar o ‘sabor’ de Nova Iorque, com as roupas, a moda, mas não sou um dos modernos. Eu ainda gosto de certos padrões nas roupas, e hoje em dia as pessoas não usam muito esses padrões. Eu tento que seguir o que é feito na tira dominical o máximo que posso, porque é tudo contínuo, a mesma história, e a tira dominical é desenhada antes da diária. [Mas] muitos jornais não imprimem as duas, e se existe alguma variação, é melhor deixá-la entre uma dominical e uma diária do que entre uma diária e outra diária.”

Página dominical de 28 de dezembro de 2014, com lápis de Alex Saviuk
e arte final de Joe Sinnott.

Em certos aspectos, a tira dominical é mais fácil porque é colorida. “As cores são uma vantagem imensa, eu acho, pelo propósito de tornar algo mais claro. Se você tem uma camisa vermelha e calça verde ou algo, vai ser algo bem diferente com as cores, como se fossem coisas distintas mesmo. Mas, se está tudo em preto e branco, se você não tem as cores pra distinguir, então vai parecer uma coisa só, como se fosse um livro de colorir que não ganhou cor, a menos que alguma coisa seja totalmente preta. Pra tentar tornar diferente, é preciso adicionar sombras ou pintar tudo de preto. É preciso fazer isso pra tornar o desenho mais interessante no preto e branco.
Quando perguntado sobre ter um vilão favorito que ele gosta de desenhar, a resposta de Lieber é interessante: “Não um vilão. Meu personagem favorito pra desenhar é o [J. Jonah] Jameson. Eu adoro o Jameson. Ele é o mais divertido de fazer. Ele é humano demais e eu adoro as variedades de expressão que dá pra fazer. A Mary Jane — independente do que seja feito — é complicada, porque o primeiro critério é que ela precisa ser atrativa. Então não posso dar uma expressão qualquer que a deixaria menos atraente. E o Peter também precisa ser atraente. Então o Jameson é menos complicado por isso. Eu acho divertidíssimo explorar diferentes expressões. Geralmente, nos dias antigos, os artistas de quadrinhos tinham só duas expressões possíveis: ou um sorriso grande, ou uma cara de raiva com os dentes à mostra. Não existia meio termo. E, como dizem, ‘o meio termo não tem lugar nos quadrinhos’. Mas, nas tiras de jornais, existiram artistas que conseguiam fazer o meio termo. O que mais me influenciou foi o Stan Drake. Ele desenhou The Heart of Juliet Jones [O Coração de Juliet Jones]. Eu acho que ele foi o melhor que já existiu em fazer isso. A meta é ter uma combinação de sentimentos românticos de um Stan Drake com todo o poder de Jack Kirby.”
Por último, quando questionado se ainda gosta de fazer a tira O Espetacular Homem-Aranha, Lieber responde: “Sim. As pessoas me perguntam, ‘Você não fica entediado depois de tanto tempo?’, e eu não fiquei entediado porque eu considero a tira um desafio desde sempre. E eu acho que o que eu estou desenhando hoje é melhor do que o que eu desenhei quando comecei. Eu gosto do que fiz no passado, mas estou mais confiante agora. De certa forma, tem sido um processo de aprendizado. E, se você está aprendendo, não tem como ser entediante.”

SEGUINDO FIRME E FORTE

Durante o fim dos anos 1970, a Marvel lançou outras tiras de jornal relacionadas aos gibis, incluindo Howard the Duck [Howard, o Pato] (1977–1978), Conan the Barbarian [Conan, o Bárbaro] (1978–1981) e O Incrível Hulk (1978–1982). E a Distinta Competidora [DC] também se juntou à tendência no mesmo período, com The World’s Greatest Superheroes starring Superman [Os Maiores Super-Heróis do Mundo estrelando Superman] (1978–1985) e, posteriormente, Batman (1989–1991). Todas foram escritas e desenhadas por alguns dos melhores talentos da indústria, mas nenhuma provou ter o poder de vir pra ficar como a tira do Aranha.


Perguntado sobre o que torna a tira tão especial, Stan Lee responde: “Tem algo sobre o Peter Parker/Homem-Aranha que parece apelar para os leitores no mundo inteiro. Talvez seja o fato de que Peter é um personagem tão empático.” Fred Kida tinha sua própria perspectiva: “As pessoas gostam do Homem-Aranha. Ele é um herói que sempre faz coisas boas.” Larry Lieber chama um interessante paralelo para outra tira: “Pra mim, é incrível que Blondie [Belinda, no Brasil] esteja saindo por tantos e tantos anos como ainda sai e continua sendo interessante como foi no começo. Não tenho a certeza do porquê. Acho que foi por causa de um forte apelo e de fortes personagens que apelavam em qualquer lugar ou tempo. Acho que é a mesma ideia [com o Homem-Aranha]. Talvez as pessoas gostem mais do personagem, Peter Parker, um homem simples com sua esposa. Ele não é diferente. Tem lá suas peculiaridades, mas é como todo mundo.”

Nota: Após 42 anos de vida, a tira do Homem-Aranha teve seu fim em março de 2019. Larry Lieber se aposentou em 2018 e Alex Saviuk assumiu a arte até os últimos dias. Por mais que assinatura de Stan Lee estivesse presente na tira até o último dia, ele já não a escrevia desde 2000, sendo substituído pelo lendário Roy Thomas. Uma continuação foi prometida ao fim da tira, mas, até o presente momento, não foi cumprida nem pela Marvel nem pelo Sindicato King Features.

A última semana das tiras do Homem-Aranha, que saíram entre 17 e 23
de março de 2019. Roteiro de Roy Thomas, arte de Alex Saviuk e arte-final
de Joe Sinnott (na página dominical). A letrista foi Janice Chiang.

No Brasil, a editora Panini Comics está lançando os livros que compilam as tiras do Homem-Aranha desde o começo. Dois volumes foram publicados até o momento desta publicação. O primeiro compila as tiras de 1977 a 1979. O segundo contém as tiras de 1979 a 1981. O livro é baseado na edição norte-americana, publicada pela editora IDW.

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