domingo, 5 de julho de 2020

O Legado de Locher

Dick Tracy por Dick Locher

ENTRE OS MEUS cartunistas favoritos, destaco Dick Locher. Locher foi importante para me introduzir — e me fazer gostar — de Dick Tracy. E não é só uma coincidência que ambos, personagem e criador, tenham o mesmo nome: parece que eles foram feitos um para o outro.
Enquanto Chester Gould tinha um traço completamente cartunesco para a tira de Dick Tracy — lançada por Gould em 4 de outubro de 1931 e até hoje sendo publicada de forma contínua —, quando Richard Fletcher assumiu o título em 26 de dezembro de 1977, trouxe junto de si o estilo "sisudo" — o queixo de Tracy seria marcado e quadrado, e a tira teria traços grossos e firmes, com um uso intenso do preto — que seria carregado por Fletcher e passado adiante para Locher. E como ele sabia utilizar bem o preto!

Tiras de Dick Tracy por Mike Killian e Dick Locher

R.C. Harvey escreveu um artigo incrível para o The Comics Journal em 21 de agosto de 2017 — ano da morte de Dick Locher — e trago abaixo um trecho traduzido contando como foi que Locher chegou à tira:

Dick Locher à prancheta

"Locher começou a desenhar Dick Tracy após a morte de Rick Fletcher no começo de 1983. Fletcher e Max Allan Collins estavam na tira desde que seu criador, Chester Gould, se aposentou em 1977. Fletcher havia sido o assistente de Gould.
'Fletcher morreu na sua prancheta,' Locher se lembraria. 'Era 1983. E o sindicato me disse, 'Não podemos deixar a maré subir e as coisas transbordarem aqui,' e me perguntaram se eu tinha interesse em continuar. 'Eu já tenho um trabalho,' eu disse, 'Não, não, não quero deixar os cartuns editoriais de lado.' Na semana anterior, eu tinha acabado de ganhar um Pulitzer[1]. Eu realmente não queria desistir. Então eles disseram, 'Bem, você já foi convocado de qualquer jeito; vamos te arranjar um assistente.' E lá fui eu.'
E lá foi ele.
Locher assumiu a arte enquanto Collins continuou escrevendo até 1993, quando o sindicato decidiu trocar Collins e contratou Mike Kilian para a escrita. Kilian era jornalista durante o dia, e, durante a noite, escrevia uma série de romances policiais que aconteciam durante a Guerra Civil Americana [2].
A ligação de Locher com Dick Tracy, porém, começou muito antes, em 1957, quando ele foi assistente de Gould por quatro anos e meio. [...] 'Eu estava ensinando arte na Academia de Belas Artes de Chicago, [...] e Coleman Anderson, assistente de Gould na época, também dava aulas lá. Um dia saímos para jantar e ele me disse, 'Chester está à procura de outro assistente. Você tem interesse?' Eu respondi que sim, e que queria falar com ele. Então eu me encontrei com Gould na sua casa. Ele me deu uma semana de tiras e disse, 'Vá pra casa e desenhe as minhas figuras, e eu farei o roteiro.' E assim ele fez. E eu também. E ele me avaliou, gostou do que viu e me contratou.'
[...] Os cliffhangers [3] e as armadilhas são realidade na tira e, com o passar dos anos, Dick Tracy se tornou um amigo. 'Pelos longos e maravilhosos 28 anos que trabalhei na tira,' Locher me disse, 'Eu tive o prazer de estar sentado como passageiro no carro de Tracy,' completou, com uma metáfora feita de coração. 'Tudo que espero é que, durante este tempo, eu tenha entretido meus leitores e tenha alcançado a pontinha de todo o brilho que Chester Gould tinha. Foi uma carona incrível, essa que recebi. Como pessoa, eu entendia Tracy, e tenho a certeza de que ele me entendeu também. Agora, quando chegar naquela próxima esquina, é ali que eu fico. Tracy! É aqui que eu desço. Obrigado!''
E que você possa descansar em paz dessa jornada, Dick."

Após Locher se aposentar, em 2011, Joe Staton e Mike Curtis assumiram a tira, e continuam a produzindo com maestria até hoje. Locher viria a falecer em 6 de agosto de 2017.

Última tira de Dick Tracy desenhada por Dick Locher,
publicada no dia 13 de março de 2011

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Notas:

[1] Prêmio estadunidense outorgado a pessoas que realizem trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição musical.

[2] Guerra civil ocorrida entre 1861 e 1865, entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. Um dos principais motivos para seu estopim foi a longa controvérsia sobre a escravização dos negros. Com o seu término, em 23 de junho de 1865, a escravidão foi abolida em todo o território norte-americano. É um dos principais eventos estudados e escritos sobre a história dos Estados Unidos.

[3] Do Inglês, literalmente, "à beira do abismo". Recurso de roteiro utilizado nas histórias de ficção cuja principal característica é a ideia de levar uma personagem ao limite, tal como um dilema ou um confronto, e então utilizar disto para levar a uma revelação, geralmente surpreendente. A ideia dos cliffhangers é manter a atenção do público, dando o gosto de "quero mais".

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