domingo, 28 de junho de 2020

#ExplorandoTiras: Construindo um universo em tiras

Começo aqui uma série com o intuito de explorar e entender os detalhes e as propriedades que fazem as tiras em quadrinhos serem únicas. Os estudos aqui são baseados em tiras já existentes.

O Fantasma de Tony DePaul: os personagens criados para expandir o universo do Espírito-que-Anda

Tira dominical do Fantasma publicada em 26 de fevereiro de 2012.
Roteiro de Tony DePaul, arte de Terry Beatty.

O FANTASMA POSSUI mais de 400 anos de vida. Pelo menos é isso que todos os seus inimigos juram acreditar, especialmente por conta de todo o mito criado conforme os anos avançaram, desde sua primeira história, Os Piratas Singh, iniciada em 17 de fevereiro de 1936. Na verdade, o Espírito-que-Anda é um legado, passado de pai para filho há 21 gerações. E o papel do tempo foi fundamental para que essa longa história fosse construída.
As tiras em quadrinhos possuem diversas limitações. Entre elas, as de maior destaque são:

a) a falta de espaço no layout "fixo" (horizontal) e, consequentemente, um menor número de quadros para desenhar;
b) a demanda por um longo tempo de publicação, o que torna todo e qualquer desenvolvimento demorado;
c) a impossibilidade de lidar com o tempo real de forma concreta.

Com isso, como criar um universo conciso e justificável em uma tira seriada [1], com personagens que causem interesse no público?
Após a morte de Lee Falk, aquele que criou tanto O Fantasma quanto Mandrake, o Mágico (1934), em 1999, suas criações foram passadas adiante e continuadas. Em Mandrake, Harold "Fred" Fredericks (1929–2015), que era o artista da tira desde 1964, assumiu também os roteiros. Ao assumir a arte, Lee e Fredericks já aproveitaram para mudar um pouco o foco: Mandrake passaria a agir como um "agente secreto" que iria ajudar a Polícia com casos que ela não iria resolver. Mandrake possuía um universo interessante, com parceiros fixos ou momentâneos — como seu melhor amigo Lothar e sua mulher Narda, ou seu pai Theron e o Collegium Magikos — assim como inúmeros vilões e arqui-inimigos, alguns com aparições mais esporádicas, outros com uma frequência maior — como o seu meio-irmão Luciphor, o Cobra ou o Camelo de Barro. Porém, Mandrake, o Mágico era uma tira incontínua [2]: a aventura com o Cobra não tinha ligação alguma com a gangue que ele viria a prender na aventura seguinte. Ou seja, eram eventos separados — que até poderiam ter uma menção futura, mas haviam pouca conexão direta. Fredericks, ao assumir os roteiros, manteve a tira dessa forma.

Tiras de 22 a 24 de maio de 1967, parte da história O Retorno do Mal,
com roteiro de Lee Falk e arte de Fred Fredericks.

Entretanto, o Fantasma foi para um novo escritor: Tony DePaul. DePaul já havia escrito histórias para edições suíças do Fantasma (o Fantomen) e recebeu a oportunidade de vir a trabalhar em cima do Fantasma. A presença de DePaul na tira é um fator de mudança. Ele assumiu os roteiros a partir da 196ª história diária (A Muralha Fantasma), sendo que a seguinte e a 199ª seriam escritas por Claes Reimerthi — as primeiras aventuras escritas após a morte de Lee Falk serviram como "tapa-buraco" enquanto o sindicato King Features procurava um escritor fixo para manter a tira viva. A partir da 213ª história diária (O Templo dos Deuses, parte I: O Mistério do U-Boat), quando Paul Ryan assumiu a arte, DePaul começou uma parceria de reforma no estilo da tira. O elemento drama passaria a estar presente, além da fluidez entre as aventuras. Logo na quinta aventura O Retorno de Chatu (217ª história diária) criada por ambos, DePaul trouxe para as tiras diárias o personagem Chatu, o Píton, um terrorista internacional que foi criado pelo mesmo DePaul logo na primeira história dominical (158ª) que ele escreveu, Terror em Mawitaan (com arte de Graham Nolan). É curioso informar que as tiras diárias e dominicais, mesmo tratando do mesmo personagem, possuem histórias completamente distintas.

A primeira aparição de Chatu, o Píton, na tira de 6 de abril de 2003.
Roteiro de Tony DePaul e arte de Graham Nolan.

Portanto, uma "unificação" foi criada — as tiras diárias e dominicais ainda seguem separadas, mas os acontecimentos em uma também influenciavam os da outra. A partir daí, DePaul passou a inserir mais recorrências na tira, sempre utilizando o pretexto da legenda informativa quando se fazia necessário conferir algum dado anteriormente acontecido.
A divisão do tempo, tal como o uso equilibrado deste, também foi aprimorada com a chegada de DePaul. Entre agosto de 2009 e maio de 2011, foi publicada a saga A Morte de Diana Palmer Walker. Ela trazia novamente Chatu — depois de ser preso pelo Fantasma na aventura O Retorno de Chatu, agora o Píton busca vingança em cima de Diana Palmer, a mulher do Fantasma — numa saga envolvendo todos os personagens do universo do Fantasma, além do próprio herói.

A segunda semana de A Morte de Diana Palmer Walker,
roteiro de Tony DePaul e arte de Paul Ryan.

Simultaneamente, na 174ª história dominical O Nômade, publicada entre março e setembro de 2011, o Fantasma não aparece inicialmente: ele está justamente enfrentando Chatu. Enquanto isso, Eric Sahara, o Nômade, aproveita-se de toda a confusão criada pelo próprio Chatu para tentar dominar seu cartel. Uma conexão entre as duas histórias é criada, fazendo-nos acreditar, enquanto leitores, que tudo está ocorrendo ao mesmo tempo — mesmo com a demora semanal entre as tiras dominicais.

Tira dominical de 10 de abril de 2011, roteiro de Tony DePaul,
arte de Paul Ryan e cores de Tom Smith.

É também importante notar que, mesmo com múltiplas ocorrências acontecendo simultaneamente no universo, cada aventura mantém seu foco. Nos anos mais recentes, o mesmo Nômade se tornou o principal vilão da tira, já que Chatu encontra-se preso novamente após a saga anteriormente mencionada. Uma nova saga surge, com seu início na 245ª história, Adeus às Florestas Negras: o Nômade se aproxima cada vez mais de descobrir quem é o homem por trás da máscara do Fantasma. A história é um avanço no desenvolvimento dos filhos do Fantasma: Kit e Heloise partem em suas jornadas de crescimento — ela, para Manhattan, para estudar na Escola Briarson; ele, para o Himalaia, continuando a herança de estudos passada de pai para filho pelos Fantasmas. A aparição do Nômade nessa história se dá quando Heloise conhece a filha dele, Kadia, sua nova colega de quarto.
A conclusão da saga se deu após diversos eventos que relacionaram ações causadas pelo Nômade logo em sua primeira aparição (anteriormente mencionada), por Chatu, por Heloise e Diana. O Fantasma não contou à esposa que Heloise tinha como parceira a filha de um terrorista, enquanto que o Nômade descobriu atráves de Kadia que Heloise tinha ligação com o Presidente do país, que, por sua vez, tem ligação com o Fantasma. Eric decide atacar Heloise, a sequestrando, mas não contava com a habilidade da menina — herdada do pai — e seu plano acaba falhando. Então, em Negócios Inacabados (253ª história diária), o próprio Fantasma vai pessoalmente à prisão onde o Nômade se encontra, e o deixa com sua marca do anel da caveira.

Os principais acontecimentos da saga com o Nômade nas tiras
diárias do Fantasma. Roteiro de Tony DePaul e arte de Mike Manley.

Ou seja, há toda uma conexão entre os personagens, pensada em detalhes, cuja vantagem se encontra justamente no processo lento de desenvolvimento. É importante ter a história já desenvolvida antes de partir para o final. Um bom método para tal desenvolvimento é o destrinchamento: começamos com a ideia (por exemplo, "A vingança de Chatu contra o Fantasma"), pensamos nos detalhes iniciais que querem ser transmitidos ("Chatu irá atacar alguém próximo para despertar um desenvolvimento de personagem"), e então começamos a aumentar as possibilidades.
Tracemos os principais acontecimentos do Fantasma, com os anos respectivos em que os mesmos ocorreram:

Primeira aventura, origem e romance com Diana: Os Piratas Singh (The Singh Brotherhood), 1936;
Aparições dos seus dois animais auxiliares:
a) O lobo Capeto (Devil): Os Piratas Singh, 1936;
b) O cavalo Herói (Hero): A Filha do Maharajah (The Maharajah's Daugher), 1944;
Pedido de casamento a Diana Palmer: O Pedido (The Proposal), 1977;
Casamento com Diana Palmer: O Casamento do Fantasma (Phantom Wedding), 1977;
Nascimento dos filhos Kit e Heloise: Os Herdeiros (The Heirs), 1978.

A origem da lenda do Fantasma contada em uma semana de tiras.
Roteiro de Tony DePaul e arte de Paul Ryan.

É notável que anos e anos de investimento ocorreram para que a tira tivesse mais e mais elementos concisos. Hoje, com o básico do universo já definido, os detalhes principais podem ser abertos em maiores ramificações, proporcionando novas explorações e descobertas.

Conclusão

Uma tira precisa de tempo (às vezes, muito) para "chegar a algum lugar". Paciência e determinação são fundamentais, mas, acima de tudo, é preciso ter em mente o que se quer explorar. Uma dica útil dada por autores, inclusive de tiras seriadas, é ter uma ficha geral do universo que está sendo construído, com descrições dos personagens e dos lugares que o compõem, que cresce conforme o próprio universo se expande.

No próximo #ExplorandoTiras:
Os diálogos em Rex Morgan M.D., por Terry Beatty

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Notas:

[1] As tiras em quadrinhos possuem diversos gêneros: humor, aventura, drama, policial, etc. Enquanto as tiras de humor geralmente são tiras de gag-a-day (uma-piada-por-dia), os outros gêneros trabalham mais com a serialização dos eventos.

[2] Pretendo dividir as tiras em duas categorias nestes estudos: contínuas e incontínuas. Por "contínua", me refiro a uma tira que é construída como uma novela "infinita", onde, entre os temas principais, outras histórias com temáticas menores são inseridas, dando um senso de fluidez — o melhor exemplo de uma tira contínua é Príncipe Valente (Prince Valiant, por Harold Foster), que desde sua primeira aparição em 1937 segue contando a mesma história. Por "incontínua", me refiro a uma tira que é construída tal como um seriado policial, em que cada episódio/aventura tem um foco único e objetivo, com começo, meio e fim ditados — um ótimo exemplo de tira incontínua é Rip Kirby (Nick Holmes, no Brasil, por Alex Raymond), cujas aventuras eram eventos isolados e sem ligação uns com os outros.

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Referências:

• EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. Editora WMF Martins Fontes, 4ª edição, 2010.

• McCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Editora MBOOKS, 1ª edição, 2004.

• The Phantom Wiki. Disponível em http://www.phantomwiki.org/Main_Page.

• Tiras do Fantasma. Disponíveis em https://www.comicskingdom.com/phantom.

Lucas Cristovam, 28 de junho de 2020,
Parnamirim, Rio Grande do Norte, Brasil.

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