domingo, 26 de julho de 2020

Bobby London e a polêmica em "Popeye"

POPEYE QUASE SEMPRE é lembrado como o marinheiro que salva Olívia Palito do grandioso brutalhão Brutus, após comer espinafre diretamente de uma lata e ter seus braços crescidos enquanto uma música toca ao fundo. Mas, a realidade é outra, e Popeye nem sempre foi fã de espinafre, pra ser honesto[1].
Popeye apareceu pela primeira vez em Thimble Theatre (em português, literalmente, Teatro de Dedais), no dia 17 de janeiro de 1929, quase dez anos após o lançamento da tira nos jornais — que ocorreu no dia 19 de dezembro de 1919 —, como um personagem de menor importância, mas isso logo mudaria. No final de sua primeira história, era para que ele não voltasse mais a dar as caras, afinal Thimble Theatre não tratava dele mas sim da própria Olívia Palito (Olive Oyl) e seu namorado Harold Hamgravy e o irmão de Olívia, Castor Palito (Castor Oyl). Mas o marinheiro conquistou os leitores de primeira, tanto que, após muito insistirem, fizeram com que o criador da tira, Elzie Crisler Segar, o trouxesse de volta.
Logo a tira mudaria de nome para Thimble Theatre starring Popeye, the Saylor (em português, Teatro dos Dedais estrelando Popeye, o Marinheiro) e então apenas Popeye. E, desde 1929, o protagonista continua a aparecer nos jornais pelo mundo afora... Porém, atualmente e de forma inédita, apenas aos domingos.

Capa do primeiro volume da coletânea de
tiras de
Popeye, por Bobby London.

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A TIRA DIÁRIA de Popeye teve diversos autores após seu criador original, Segar, morrer repentinamente em 1938. Doc Winner segurou as pontas ainda assinando em nome de Segar, e então os times de Tom Sims e Ralph Stein nos roteiros e Bela Zaboly na arte levaram a tira até 1959.
Neste ano, Bud Sagendorf entraria e traria a tira ao seu maior auge. Assistente de Segar, Sagendorf tinha o mesmo estilo de histórias que o primeiro criador, diferenciando apenas no ritmo em que elas eram contadas — enquanto Segar tinha histórias rápidas, Sagendorf levava às vezes uma inteira semana apenas para mover um pequeno pedaço da história. Sagendorf manteve os personagens clássicos, trouxe aqueles que haviam desaparecido e também introduziu novidades, todas estas tendo uma forte base Segariana. Sagendorf passou a tira diária adiante mas manteve-se na dominical até sua morte em 1994, quando Hy Eisman a assumiu, e continua a desenhando todos os domingos até hoje.
Então, em 1986, Bobby London assumiu ambos roteiro e arte da tira diária. London seria responsável por trazer updates à tira, colocando Popeye e seus amigos em situações atuais (para a época), mas mantendo o espírito de Segar presente. Em uma das suas melhores aventuras, The Return of Bluto (O Retorno de Brutus), colocou Popeye a encarar cada versão de seu rival barbudo, desde as clássicas das tiras, passando pelos gibis e animações. Infelizmente, a corrida de London na tira foi curtíssima, terminando em 1992.
O motivo é uma das maiores controvérsias do mundo dos quadrinhos: sua última aventura, Witch Hunt (Caça à Bruxa), trazia uma Olívia Palito viciada em compras pelo telefone (que era uma das novidades trazidas com a modernização das redes telefônicas). Entre seus diversos pedidos, uma surpresa: recebeu uma versão "'bebê-robô' de Brutus que é tão humano que ninguém diria que é um robô" que ela não se recordava de ter pedido. Ao testar o que o "bebê-robô" era capaz de fazer, ele praticamente se equiparava ao rival de Popeye, causando destruição para todo lado. Ao contar a Popeye que ela não tinha a intenção de manter o pedido para si e que gostaria de devolvê-lo, um passante escuta à janela Popeye dizer que "se você não quer carregar um bebê Brutus para lá e para cá, então deveria apenas se livrar dele". O passante corre e decide contar ao padre da cidade o que acabara de ouvir, dizendo, desmaiando, que Olívia pretendia cometer um "ato que começa com a letra A". A piada[2] se referia ao ato de aborto.

As três últimas semanas de Popeye publicadas nos jornais.

A história foi interrompida e não teve conclusão nos jornais. Bobby London foi demitido da tira.
"É crível que os arcos devem ser apropriados à natureza de uma tira qualquer. Os assuntos tratados nas tiras recentes de Popeye eram inapropriados para serem incluídos no que é uma tira de humor famíliar," declarou Jay Malcolm Kennedy, na época editor dos quadrinhos publicados pelo King Features Syndicate, sindicato que distribuía a tira de Popeye, entre outras. "Independente de qual era a ideia que o cartunista trataria sobre o assunto de aborto, o sindicato crê que ela não é um assunto apropriado para Popeye." Curiosa declaração dada pelo editor sobre uma tira em que assuntos, como, por exemplo, a agressão às mulheres, eram comuns desde seu primórdio.

Tira de 11 de novembro de 1936. O pai de Popeye agride
Olívia no último quadro.

Tira de 10 de fevereiro de 1937. O pai de Popeye agride
a Bruxa do Mar. "Você não é um cavalheiro!" diz a Bruxa
no último quadro, ao que o pai de Popeye responde "Eu
sei que não!"

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EM 1992, LONDON deu uma entrevista ao artista S.C. Ringgenberg sobre o ocorrido:

S.C. Ringgerberg: Estou falando com Bobby London. É dia 13 de julho de 1992. Bobby, me diga, por favor, em suas palavras, o que foi o problema em Popeye e com o King Features.
Bobby London: Bem, no dia 25 de outubro eu fiz uma piada em que a Bruxa do Mar dizia "Droga! Lá se vai Roe contra Wade[3]!" e não ouvi nenhuma reclamação do sindicato e isso foi já que eu sempre ouvia deles quando eles reclamavam de alguma piada ou qualquer coisa sem sentido que eu colocava na tira, que eram raras, mas às vezes acontecia. Eu automaticamente assumi que "Roe contra Wade" era algo tranquilo para eles e procedi para preparar uma história sobre o assunto.
Ringgerberg: E essa é a história que eles descobriram ser problemática com a Olívia querendo devolver o bebê que ela tinha recebido?
London: Ela não recebeu um bebê, mas sim um bebê-robô, que ela não lembrava de ter comprado pelo telefone. Era uma desculpa desenhada especificamente para manter a inocência da Olívia intacta, e também foi desenhada principalmente para satirizar todas as boas intenções que os personagens teriam.
Ringgerberg: Ah, então era especificamente, em sua mente, uma referência à questão do aborto?
London: Bem, claro, eu sabia disso, eu respeito a Olívia demais para subestimar sua reputação ou sua boa índole, ou qualquer outro detalhe nela. Eu nunca iria, diretamente, cutucar de forma maliciosa algo que ela se preocuparia. Eu a conheço por anos e ela é uma boa mulher, justa e correta.
[...] Ringgerberg: Há quanto tempo você estava desenhando a tira?
London: Desde 1986.
Ringgerberg: Certo, então, conte com detalhes exatamente como foi que o sindicato lhe notificou que seu trabalho era inaceitável e que você estava sendo demitido?
London: Bem, eles... Posso lhe dizer de forma breve e abrupta que tudo aconteceu de forma breve e abrupta. Eles apenas... O editor, Jay Kennedy, me ligou e disse que eles estavam insatisfeitos com a história e que eu estava sendo demitido. Foi simples assim.
[...] Ringgerberg: E você ainda tem tiras devendo a eles?
London: Estou devendo três semanas, que estou a desenhar enquanto a gente conversa agora! (Risos.)
Ringgerberg: E sobre essas tiras em questão, além da história em si, o sindicato lhe disse que eram inaceitáveis. Eles receberam alguma reclamação de algum jornal?
London: Não que eu saiba. Nunca recebi nada além de cartas positivas.
Ringgerberg: Então foram apenas os executivos do King Features decidindo que não gostaram e só?
London: Sim. Eu ouvi rumores de alguém que eles estavam considerando me retirar fazia um tempo por terem outros planos para o Popeye, mas eu só ignorei. Continuei ignorando rumores como aquele porque são apenas rumores, e eu queria me concentrar no meu trabalho, melhorá-lo. [...]
[...] Ringgerberg: Bem, além dessa coisa toda com a história da Olívia, a tira do Popeye estava dando certo? Seu trabalho tinha atraído mais jornais?
London: Sim, tinha, e, pra te falar a verdade, estava começando a atrair mais clientes quando essa história da retirada aconteceu. [...]
[...] Ringgerberg: E quando você descobriu que foi demitido?
London: Sexta, 17.
Ringgerberg: Então foi há duas semanas.
London: Sim, como disse, foi tudo muito rápido.
Ringgerberg: E qual sua opinião sobre o King Features agora?
London: Sem comentários. (Risos.)
Ringgerberg: Certo.
London: Tudo que posso dizer é que não vou comer espinafre por um bom tempo.

A história controversa de London seria finalmente impressa anos depois, no segundo compilado com tiras que foi lançado pela IDW em 2014. Desde 1992, a tira diária tem reimpressões de histórias da época de Bud Sagendorf, prática que continua até os dias de hoje.

Capa do segundo volume da coletânea de
tiras de 
Popeye, por Bobby London. Ele contém
toda a aventura
Caça à Bruxa, inédita até então.

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Notas:

[1] O espinafre no universo de Popeye só ficou marcado como "a comida favorita do marinheiro" por conta das animações produzidas pelos Estúdios Fleischer a partir de 1933, que introduziram o alimento como um "aumentador de força". Nos quadrinhos, a aparição da verdura era raríssima. Popeye não ganhava mais força ao comer espinafre nos quadrinhos. Na verdade, ele dizia que sua força natural era mantida por conta do espinafre.

[2] Por mais que houvessem arcos com começo, meio e fim, as tiras de Popeye sempre continham uma piada no último quadro, diferenciando-as das outras tiras de aventura que colocavam geralmente cenas de suspense (cliffhangers).

[3] Ocorrido em 1973, o caso judicial Roe contra Wade foi o caso pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos da América reconheceu o direito ao aborto ou à interrupção voluntária da gravidez.

Lucas Cristovam, 26 de julho de 2020,
Parnamirim, Rio Grande do Norte, Brasil.

2 comentários:

  1. Lucas, excelente texto. Informativo e reflexivo. Sempre fui fã do personagem e não tinha conhecimento de muitos detalhes que abordou. Que venham muitas outras análises!

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  2. Adorava as animações do Popeye na minha infância. Muito bom saber como tudo começou e como terminou, seu texto é muito explicativo, amei!

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