domingo, 6 de fevereiro de 2022

Esmagando os sindicatos: a história da tira do Incrível Hulk

Matéria originalmente publicada na revista da editora TwoMorrows Back Issue #70, de fevereiro de 2014.

Por Dewey Cassell
Tradução por Lucas Cristovam

Painel de abertura da tira dominical do Incrível Hulk,
com arte de Larry Lieber.

COMO MUITAS COISAS na Marvel Comics, tudo começou com Stan Lee. O ano era 1977 e a Marvel tinha lançado uma tira de jornal diária baseada no Espetacular Homem-Aranha, com Lee escrevendo os roteiros e o veterano artista dos gibis do Teioso John Romita Sr. desenhando os quadros. A tira do Homem-Aranha foi um sucesso, e logo a Marvel começou a vasculhar os arquivos por outros personagens que pudessem ser inseridos neste universo das páginas grandes de jornal. Logo depois do Aranha, Howard o Pato, saiu em junho de 1977, seguida por Conan o Bárbaro, que começou a sair em em setembro do ano seguinte.
Então, na segunda, 30 de outubro de 1978, O Incrível Hulk apareceu nos jornais. Assim como Homem-Aranha, Howard o Pato e Conan, a tira foi distribuída pelo sindicato Register and Tribune, mas, enquanto as outras tiras da Marvel possuíam personagens recorrentes dos gibis, a tira do Hulk não tinha, porque quando ela começou a ser lançada, existia um outro lugar em que o Gigante Esmeralda era mais reconhecido que os gibis: a televisão.

Com 5 temporadas e 82 episódios, a série do Hulk trazia
Bill Bixby como o protagonista David Banner.

Com o gigantesco sucesso da série de TV O Incrível Hulk, Stan Lee decidiu usar sua fórmula de roteiro do Hulk como fugitivo como base para a tira de jornal do personagem. Adultos eram a maioria dos leitores de jornais, e eles provavelmente assistiam mais a série de TV do que liam os gibis. Entretanto, as histórias do Hulk nos jornais eram únicas: elas não espelhavam a série de TV, mesmo utilizando a mesma premissa. Além disso, não foram utilizados os atores da série como personagens da tira. Porém, assim como a série, o Hulk não falava e não era tão forte ou resiliente como era nos gibis.
A tira de jornal do Incrível Hulk foi inicialmente escrita por Lee e desenhada por seu irmão, Larry Lieber. Lieber já estava escrevendo e desenhando gibis para a Marvel desde 1950. Mas Lee em breve descobriria que tinha muita comida no seu prato e Lieber acabou pegando um pouco da fatia para si assumindo os roteiros também — inicialmente como escritor-fantasma mas logo depois tendo seu nome na assinatura principal.

Primeira tira do Incrível Hulk, de 30 de outubro de 1978.
Roteiro de Stan Lee e arte de Larry Lieber.

BONS TEMPOS

Lieber gostava de trabalhar na tira do Hulk: “Tudo começou com Stan escrevendo e eu desenhando. Mas, depois de um tempo, ele desistiu da escrita e a entregou para mim. Ele meio que a deixou nas minhas mãos mesmo. Então passei a escrever e desenhar, e eu adorava fazer isso. Era algo total e somente meu quando eu escrevia. É uma história com quadrinhos, mas a parte principal era justamente a história. Eu creio que, se você tem lindos quadros desenhados, mas tem uma história fraca, você não tem uma boa tira. Se você tiver uma ótima história, mas quadros fracos, ainda assim você pode ter uma ótima tira. Sempre senti que a história era a parte mais importante da coisa. A maioria dos leitores não são críticos de arte.”
“O artista que mais bem desenhava do que todos que eu já conheci era John Buscema”, Lieber continua. “Mas eu não sei se seu trabalho teria sido vendido somente pelos seus desenhos. Dick Tracy não possuía uma arte bonita, mas era uma tira muito popular. Quando eu escrevi a tira do Hulk, tentei fazer que ela fosse tão boa quando os filmes que eu tinha assistido e curtido naquela época, pois eu pensava que estava escrevendo algo parecido e importante.”
Lieber era um fã da série de TV do Hulk, e isso refletia em seu trabalho na tira de jornal. Lieber relembra: “Eu era influenciado pela série porque parecia que ela trazia pessoas de verdade em situações de verdade. Tentei repetir o mesmo na tira. Criei personagens próprios. Eu ainda me recordo de algumas dessas histórias. Fiz uma sobre um boxeador e sua filha. Ela era modelo e ele, lutador, e ela odiava ele porque ele abandonou a mãe dela e tudo o mais. Teve outra história com o Hulk e três mulheres, uma era uma lutadora de lama, outra era expert em caratê e a terceira era uma garota do textas que tinha um pai rico do qual ela estava fugindo. Eu realmente adorava escrever e desenhar essas mulheres, e o modo que elas se relacionavam com David Banner e o Hulk. Escrevi até uma história sobre um xerife e um lobisomem, no meio de um pântano ao sul. Eu realmente me divertia fazendo aquilo.”
Não foi o Hulk, porém, mas sim seu alter ego que realmente encantava Lieber, como ele explica: “Eu preferia escrever sobre os humanos — e adorava desenhar pessoas. Eu tentei seguir o realismo, porque era o que eu mais gostava. Talvez foi por isso que eu gostei de fazer o Rawhide Kid[1] no passado. Escrevi e desenhei o personagem por sete anos. Para mim, ele não era um super-herói. Eu o tratava como uma pessoa de verdade. E fiz o mesmo com a tira do Hulk, fazendo o David Banner se relacionar com outras pessoas. De certa forma, o Hulk era o menos importante pra mim — era com o David que eu mais me importava.”

O Incrível Hulk de 1 de novembro de 1978.
Roteiro de Stan Lee e arte de Larry Lieber.

Lieber demonstrou ter muita criatividade na tira, incluindo o uso de quadros verticais, um em cima do outro [e não lado a lado, como é comum em tiras de jornal], uma técnica que ele também usou quando começou a desenhar as tiras do Aranha anos depois. “Eu não faço isso hoje em dia,” Lieber explica. “Mas, na época, eu fazia demais sempre que a história permitia. Sabe, se o protagonista derrotou cinco pessoas, você pode colocar um quadro grande pra mostrar elas ali caídas. Eu achava que funcionava. Mas só fazia quando achava que tinha sentido e parecia bom.”

MUDANÇAS ARTÍSTICAS

Na primavera de 1979, Lieber começou a procurar ajuda para a tira e falou com o artista Rich Buckler. Buckler explica: “Eu estava trabalhando quase que exclusivamente para a Marvel na época e eu acabei conhecendo Larry Lieber. Larry estava escrevendo a tira no lugar do Stan e também a desenhava. Ele me perguntou certo dia se eu tinha interesse em desenhá-la, porque ele estava se sentindo sobrecarregado. Larry sabia que eu tinha alguma experiência com tiras de jornal (desenhei Agente Secreto Corrigan para o Al Williamson, O Fantasma para o Sy Barry, e Flash Gordon para o Dan Barry). Desenhei a tira no lugar do Larry por um mês. Fiz algumas páginas diárias e dominicais sem receber os créditos. Foi algo bem informal no começo. Enquanto as coisas progrediam, Larry me colocou em foco, e os créditos da tira mudaram para ‘O Incrível Hulk por Stan Lee e Rich Buckler’. Trabalhar com o Larry era, como sempre, extremamente prazeroso. Eu fazia meus próprios leiautes e Larry me dava total liberdade artística. Não dava pra fazer aquele tipo de ação desenfreada que é característica do Hulk porque não havia espaço pra isso. Ainda assim, eu fiz o que era possível pra tornar a tira o mais empolgante possível.”

O Incrível Hulk de 27 de setembro de 1979.
O roteiro já era de Larry Lieber, mesmo sendo
creditado ao Stan Lee. Arte de Rich Buckler.

Aquela liberdade criativa se estendia para o sindicato Register e Tribune também. Buckler relembra: “Raramente ouvíamos algo deles. Eu lembro que teve uma pequena correção que precisei fazer num desenho do Banner. Ela foi solicitada por Sol Brodsky, que, na época, estava no comando da parte de produção artística (preparando as artes que eram enviadas para o sindicato). Tirando isso, não tinha literalmente nenhum ajuste a ser feito.”
Desde o começo, tiveram uma variedade de arte-finalistas na tira do Hulk. Como Buckler nota: “A arte final era feita na própria Marvel, então sempre tinha um olhar Marvel. A maior parte da arte final da tira era feita pelo Frank Giacoia e o Joe Sinnott, com ocasionais assistências do Mike Esposito. Eu fiz a arte final em algumas tiras no começo, mas era difícil manter o prazo, já que eu também desenhava gibis pra Marvel, então eu me concentrei em fazer apenas o lápis. Desenhei a tira por aproximadamente seis meses.”

O Incrível Hulk de 27 de maio de 1980. Roteiro de
Larry Lieber, arte de Alan Kupperberg e arte final
de Frank Giacoia.

O substituto de Buckler não era uma pessoa estranha com as tiras de jornal: Alan Kupperberg. Kupperberg explica como começou: “Rich Buckler trabalhou na tira antes de mim. Acho que ele estava muito atarefado ou não conseguia mais disponibilidade pra fazê-la. Eu estava desenhando as tiras do Howard e do Conan, então, quando eles precisaram de ajuda na tira do Hulk, eles naturalmente pensaram em mim. É claro, eu já conhecia o Larry, pois trabalhamos juntos na época da Atlas Comics para o Martin Goodman.”
Como Buckler, Kupperberg também desenhou de forma anônima algumas tiras, mas, ao fim de novembro de 1979, seu nome já aparecia nos créditos. Lieber ainda fazia o lápis de algumas tiras, assim como o artista Charles Nicholas, mas Kupperberg fez a maior parte do trabalho artístico das histórias futuras, inclusive assumindo também o roteiro. “Eu também passei a escrevê-la, próximo ao fim,” Kupperberg lembra. “Achei que algumas sequências pareciam melhores que outras. Eu realmente gostei do visual da tira no episódio do Homem-Montanha.” Kupperberg planejou introduzir uma rara aparição de supervilões na tira, mas não conseguiu fazer isso.

O Incrível Hulk de 20 de maio de 1982. Mesmo tendo o
roteiro e a arte de Alan Kupperberg, os créditos acima
da tira eram dados à Marvel Comics.

“A tira acabou no meio de uma história. Sol chegou no escritório num dia, ao fim da tarde, e falou, ‘A tira acabou’. Mas ainda tínhamos de dar um fim e precisamos de mais 6 dias pra isso. Fui pra casa e fiz as seis tiras restantes. Voltei umas 19 horas depois com as tiras em mão pra concluir a história, que tinha o Hulk caminhando em direção ao pôr-do-Sol, ou algo do tipo. Eu estava planejando levá-lo pra Nova Iorque, para enfrentar o Mister Hyde e o Cobra. Ia fazer com que o Hulk tivesse um ajudante ou amigo temporário, baseado num amigo meu da vida real.” Várias tiras com Hyde e Cobra já estavam prontas, mas nunca foram publicadas.
Kupperberg também gostava de trabalhar com o Hulk, mas também mantinha tudo sob certa perspectiva: “Quando estava desenhando Howard, eu morava em Nova Iorque. Ela era publicada, se não me engano, no The New York Post, e eu reparei que, conforme ia andando pela cidade, encontrava meu trabalho jogado em latas de lixo. Enquanto isso, meus gibis, esses sim eram guardados e colecionados.”
A tira do Incrível Hulk durou ainda mais tempo do que ambas a do Howard e a do Conan, tendo seu fim no dia 5 de setembro de 1982, (O último episódio da série de TV do Hulk foi ao ar no dia 2 de junho de 1982.) No começo dos anos 1980, a Ace/Tempo Books republicou várias histórias das tiras do Incrível Hulk em edições de capa cartão.

A última tira do Incrível Hulk, de 5 de setembro de 1982.
Roteiro e arte de Alan Kupperberg.

A tira do Espetacular Homem-Aranha ainda está em publicação e Lieber continua nos desenhos, algo que faz há 26 anos[2]. Mas ele ainda tem memórias carinhosas de sua outra tira: “Eu gostava do Hulk e de fazer a sua tira. Tive grande orgulho quando o Stan olhou pra ela e disse que ela estava sendo muito bem escrita. Lembro que ele disse certa vez que ‘Ela é ainda mais dramática que a tira do Homem-Aranha!’”.
'Nuff said![3]

_____
Notas:

[1] Conhecido como Billy Blue no Brasil, o Rawhide Kid é um cowboy da Marvel, cujo nome verdadeiro era Johnny Bart. Sua primeira aparição foi em março de 1955, quando a Marvel ainda era Atlas Comics. Foi criado por Stan Lee e Bob Brown.
[2] A tira do Homem-Aranha teve seu fim em março de 2019, e Larry Lieber já não estava mais a desenhando — tendo se aposentado da tira em 2018 e passando a arte para o arte-finalista Alex Saviuk.
[3] O termo “'nuff said” foi muito utilizado por Stan Lee e não possui tradução precisa para o português, mas pode ser adaptada como "Já disse tudo".

Nenhum comentário:

Postar um comentário